6 de janeiro de 2012
Na sua estante: ano novo, pretendente novo
#101: Ano Novo, Pretendente Novo
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Bia se insinuou na cama, por debaixo das cobertas, até se aninhar contra a mãe, que apenas abriu um olho para encará-la, antes de voltar a se afundar no travesseiro.
- É muito cedo para isso. Eu ainda estou em outro fuso horário. – a mulher resmungou.
Com olhos pidões, Bia se estreitou para mais junto dela.
- Mas se não for agora, não vai dar tempo. O pai e André estão distraídos na cozinha. E a senhora prometeu.
- Peça ao seu pai.
- Não posso.
Resignada, a mãe se virou na cama, abrindo os olhos para encarar o teto. Uma semana atrás, quando tinha chegado para passar a virada de ano com os filhos, Beatriz praticamente a assaltara com uma bateria de questões ridículas e altamente constrangedoras.
Ela pedira tempo para pensar – afinal de contas, como definir conceitos e escaramuçar minúcias que apenas tinham estado lá desde sempre e ela nunca parara para questionar? Mas as passagens de volta estavam marcadas, a paciência de Bia se esgotara e aparentemente ela teria de se virar para responder, da melhor forma que podia.
- Você se lembra de quando discutimos sobre Romeu e Julieta? – ela perguntou, virando-se para encarar a filha – Aquilo resume o meu ponto de vista. Eu realmente não acredito em amor à primeira vista.
- Mas...
- Mas... – a mãe interrompeu, antes que Bia pudesse se lançar a alguma argumentação – Mas eu acredito que em certas condições, sob um certo... um certo encantamento, pode surgir alguma coisa. Uma admiração... um sentimento que mais para frente se transforma em amor. Consegue me acompanhar?
Beatriz assentiu devagar com a cabeça.
- Quanto ao resto... eu não tenho respostas certas. – a mais velha continuou – Depende de cada um. Nem sempre são fogos de artifício e música no ar. Às vezes você já pode ter começado a amar uma pessoa e nem se dar conta disso. Há uma citação... – ela cerrou os olhos, como se isso pudesse ajudá-la a lembrar – “Não posso determinar a hora, ou o lugar, o olhar, as palavras, em que tudo se baseou. Foi há muito tempo. Eu já estava a meio caminho antes de compreender que já tinha começado”.
Pensativamente, a garota digeriu aquilo, sob o olhar – atento e já completamente acordado – da mãe. O assunto talvez pudesse ter morrido ali, não fosse a mulher dar um meio sorriso e cutucar a filha de leve.
- Muito bem, o que aconteceu dessa vez?
Bia piscou os olhos como quem acaba de acordar.
- Dessa vez?
- Da última vez que tivemos essa conversa, você tinha um poeta renascentista como admirador secreto. E agora?
A jovem deu um suspiro.
- Acho que estou apaixonada por Plutão.
Arqueando uma sobrancelha, a mãe soergueu meio corpo sobre o cotovelo para poder encará-la melhor.
- Você está apaixonada por um planeta? Isso é algum tipo de código para dizer que quer largar História e estudar Astronomia ou coisa do tipo?
- Eu não estou falando do planeta. – Bia fez uma careta, indecisa entre se zangar e rir.
- Então me ilumine aqui, por favor. Eu respondi tudo o que você perguntou o melhor que podia.
- Eu estava falando de Plutão da mitologia. Romana. Sabe? Aquele da cornucópia,...
- e deus dos infernos? Claro. – a mulher terminou de se levantar, jogando as pernas para fora da cama.
- Aonde a senhora está indo?
- Telefonar para seu tio. Ele deve conhecer algum psiquiatra por aqui.
- MÃE!
Ela se voltou, cruzando os braços.
- O que você quer que eu faça? Bia, você acaba de me dizer que está apaixonada por um deus mitológico. E o deus dos infernos também!
- A senhora pode me deixar explicar?
- Sou toda ouvidos.
Sentando-se na cama, Bia passou a língua pelos lábios, tentando descobrir por onde começar.
- Hum... bem, a senhora se lembra que eu falei sobre um baile de máscaras que minha turma fez para angariar fundos para a formatura?
A outra suspirou.
- Deixa eu adivinhar... você encontrou Plutão por lá.
- Isso.
- E ele estava usando máscara e não deu o nome real... ele pode ser o Dante?
- Minha intuição diz que não. – Bia retrucou, um tanto incerta – As cartas pararam... e se ele fosse o Dante, acho que tinha dito alguma coisa, não?
- Então agora você tem um segundo admirador anônimo?
- Mais ou menos isso, sim.
Fechando os olhos, a mulher massageou as têmporas.
- Se sua avó ouvir essa história, ela terá uma síncope de tanto rir. E depois irá se virar para mim e dizer ‘agora você sabe o que eu sofri’. Mas, de alguma forma, acho que ela saiu ganhando nessa história.
- Por que ela sairia ganhando? – Bia questionou, confusa.
- Porque eu tenho certeza que sofro mais do que ela. Ao menos ela sabia quem era seu pai. O que eu faço com não um, mas dois anônimos na vida amorosa da minha filha?
Dessa vez, Beatriz se deixou sorrir.
- Chama o serviço secreto?
A Coruja
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