18 de junho de 2010

Na sua estante: um encontro com Austen - Segundo Movimento || Razão & Sensibilidade






Segundo Movimento: Razão & Sensibilidade


- “Não, não – exclamou Marianne -, uma desgraça como a minha não tem orgulho. Não me importa quem saiba que estou arrasada. O triunfo de me ver assim pode ser distribuído a todo o mundo. Elinor, Elinor, os que sofrem pouco podem ser tão orgulhosos e independentes quanto quiserem, podem resistir ao insulto ou devolver a humilhação... mas eu não posso. Tenho de sentir... tenho de estar arrasada... e sejam eles bem-vindos para apreciar a consciência disso.” – Sofia fechou o livro, marcando com o dedo a página em que estava, antes de se voltar para a amiga – Marianne é a maior drama queen que eu já vi na vida.

Beatriz levantou os olhos de sua própria cópia de Razão e Sensibilidade, observando a morena com um meio sorriso.


- Sério, Sofia, se você continuar assim, vou pensar que você tem alguma coisa pessoal contra a pobre Marianne.

- Não, nada pessoal. – ela balançou a cabeça – Apenas acho que ela exagera muito nessa coisa de demonstrar seus sentimentos. – Sofia riu – Ela só não é pior que Catherine e sua fixação por romances góticos.

Elas vinham se encontrando há dois meses naquele “clube de leitura” – já tinham passado por Orgulho e Preconceito, A Abadia de Northanger e Emma, sem se preocupar em lê-los em qualquer particular ordem.

Emma, particularmente, se tornara um dos favoritos da dupla, especialmente porque no dia em que tinham se reunido para discuti-lo, o encontro fora na casa de Beatriz e a caçula não perdera uma única oportunidade de citar o irmão e de como ficaria feliz se Sofia se apaixonasse por André.

Sofia sorriu para si mesma, relembrando a conversa que se tinha seguido quando ela finalmente perdeu a paciência...

“A morena arqueou uma sobrancelha.

- Sério, Bia? Você vai começar com isso de novo?

- Mas, Sofia...

- Olha, no dia em que você arranjar um noivo para você, eu deixo você se preocupar com minha vida amorosa. Até lá...

- Se for assim, daqui a cinqüenta anos vamos ser duas velhas tias solteironas, criando 27 gatos e discutindo sobre quem vai limpar a caixa de areia.

A morena sentiu o riso escapar-lhe sem jeito, em meio a golfadas de ar, até que estivesse gargalhando gostosamente.

- Você é alérgica, Bia, não poderíamos criar tantos gatos. – Sofia observou, após conseguir se controlar o suficiente para responder – De qualquer jeito, o que você tem contra casamentos?

- Você não sabe por que casamentos se realizam em altares? – Bia perguntou, um tanto maliciosa.

Sofia piscou os olhos.

- Não... Por quê?

- Porque são nos altares que ocorrem os sacrifícios, Sofia.

- Eu não te entendo, Bia... – a outra balançou a cabeça – Se você tem uma opinião tão cínica acerca de relacionamentos, porque insiste que eu arranje um jeito de gostar do seu irmão?

Dando de ombros, Beatriz abaixou a cabeça, perdendo-se por alguns minutos na cópia de Emma, ainda aberta sobre a mesa.


“- Não tenho nenhuma das habituais propensões das mulheres para casar. Se eu me apaixonasse por alguém, seria diferente; mas nunca me apaixonei; não é do meu feitio, nem da minha índole; creio que nunca me apaixonarei. E, sem amor, penso que seria tola se quisesse trocar a situação que tenho.”

- Ok, Emma, vamos continuar logo com isso. E nem mais um pio sobre seu irmão.”

Naquela manhã, tinham começado Razão e Sensibilidade, revezando-se para ler em voz alta, o tempo todo trocando comentários entre si.

- Eu acho que você está enxergando só os defeitos de Marianne porque há a figura de Elinor para comparar a ela. – Bia observou, enquanto abria um pacote de salgadinhos – Se não houvesse Elinor, talvez o comportamento de Marianne não fosse tão ofensivo para você.

- Se não houvesse Elinor, Marianne provavelmente teria se matado no processo de esquecer Willoughby. – Sofia retrucou, avançando várias páginas, como se procurasse por algo – Na verdade, ela quase morreu, não foi?

- Bem, ela ficou doente... mas ainda não chegamos nessa parte do livro, pode ser que seja diferente do filme. – Beatriz deu de ombros, voltando a atenção para o volume em seu colo – Sabe, Elinor e Marianne me faz lembrar de nós duas. – ela confessou, com um meio sorriso.

- É... e ninguém precisa questionar quem é quem na dupla, né? – Sofia deu um sorriso de lado.

Bia cruzou os braços.

- Eu me ressinto que você não tenha alcançado meu ponto, Sofia, especialmente depois de eu me esforçar tanto para entender suas viagens musicais. – Beatriz balançou a cabeça, embora seu tom traísse que estava se divertindo com a discussão – Eu não acho que Tia Jane tenha pensado completamente numa dicotomia quando batizou essa história de Razão e Sensibilidade. Aliás, leve em consideração que o título original fala de senso e sensibilidade e que o conceito de sensível não é necessariamente ser um ultra-romântico, mas sim, alguém com facilidade de observar as impressões ao seu redor.

- Tia Jane? – Sofia começou a rir – Sério, Bia? Você adotou a mulher agora?

- Ora, e por que não? A gente tem passado tanto tempo com os narizes enfiados nesses livros que já podemos nos considerar íntimas.

Sofia suspirou, meneando a cabeça. Beatriz apenas sorriu. Ela sempre se preocupara com a amiga – Sofia era, de uma forma geral, muito fechada, ensimesmada. Ela sabia que era uma das poucas amigas da musicista, uma das poucas pessoas com quem Sofia relaxava – embora, mesmo com ela, Sofia não se abrisse totalmente.

Desde que tinham começado aquelas reuniões quinzenais, contudo, a amiga estava... senão mais sociável, ao menos mais leve, mais em paz. Beatriz sempre pensara em Sofia como uma daquelas “artistas angustiadas”, como os poetas góticos e os músicos deprimidos. Aparentemente, ler Austen e se reconectar com a mãe através daqueles romances estava fazendo muito bem à jovem.

- Eu acho que vejo onde você está querendo chegar, Bia – a voz de Sofia fê-la despertar de seus devaneios e ela se concentrou em ouvir -, mas você tem de convir que, no caso, continuamos com uma dicotomia: Elinor é a pessoa sensível, capaz de compreender as emoções das pessoas que a rodeiam, enquanto Marianne é sensível de uma perspectiva egoísta, além do bom senso. – Sofia respirou fundo, tentando juntar seus argumentos – Eu acho que equilíbrio...

- ESSA É A PALAVRA CHAVE! – Bia exclamou, batendo palmas e praticamente pulando em pé – Veja, Sofia, não estamos falando aqui de qual irmã é melhor que a outra. Ambas estão em falta: Marianne por sentir demais e Elinor por se reprimir demais. Elinor passa mais da metade do livro sofrendo em silêncio sem necessidade; poderia ter desabafado com a mãe ou com as irmãs.

- Só que Elinor sabia que, se desabafasse com elas, acabaria fazendo com que sofressem ainda mais. – Sofia defendeu – Ela prefere cuidar da mãe e das irmãs, fazendo-se de forte, engolindo seus sapos sem depositar o fardo que é dela nas costas de ninguém.

E ali estava cristalizado o ponto que Beatriz realmente queria discutir com Sofia desde que tinham assistido ao filme e começado a ler o livro, mas ainda não tivera abertura para fazer.

- Mas aí é que está... Elinor não precisava fazer isso. – Beatriz inclinou-se para frente, observando firmemente a morena – Ela não precisava sofrer em silêncio. Talvez um dos motivos pelos quais Marianne seja tão exacerbada em seus gostos, desgostos, paixões e aversões seja justamente uma reação a isso. E você precisa lembrar que vemos Elinor também crescer e amadurecer; e, com isso, alcançar seu “felizes para sempre” quando ela se permite desabafar.

Por alguns instantes Sofia permaneceu em silêncio, encarando Beatriz, que respirava entrecortadamente como quem acabara de correr uma maratona. Finalmente, Sofia deu um meio sorriso, levantando-se para parar defronte à amiga.

- Acho que entendi seu ponto, Bia.

- Entendeu mesmo? – Beatriz retrucou, com uma voz quase tímida em comparação à paixão com que se defendera apenas instantes antes.

Sofia assentiu.

- Quando eu precisar, sei que posso conversar com você.

A caçula respirou fundo, sorrindo.

- Ótimo. Vamos voltar ao livro, então.

(Continua...)


A Coruja


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