4 de maio de 2019

Dez Anos em Dez Ensaios - Duplo Código: Adicionando Camadas de Interpretação à 'A Abadia de Northanger'

Vista da Pulteney Bridge em Bath. Acervo pessoal.

Uma característica marcante de vários dos meus escritores e livros favoritos é a presença de alusões a obras ou fatos históricos, qualquer pequena brincadeira que me passasse a impressão de estar compartilhando um segredo com o autor - uma piscadela de olho, por assim dizer. Chamava isso de ‘palavras cruzadas literárias’, ao menos até descobrir, lendo um ensaio do Umberto Eco no livro Confissões de um Jovem Romancista, que isso se tratava de uma técnica pós-moderna chamada ‘ironia intertextual’. Nas palavras dele, explica-se tal recurso como “citações diretas de outros textos famosos ou referências mais ou menos transparentes a eles”, frequentemente associada à metarrativa, “reflexões que o texto faz acerca de sua própria natureza, quando o autor fala direto ao leitor”.

A junção de ambos cria o chamado ‘duplo código’:

Duplo código é o uso concomitante de ironia intertextual e implícito apelo metanarrativo. O termo foi cunhado por Charles Jencks, para quem a arquitetura pós-moderna “fala em pelo menos dois níveis ao mesmo tempo: para outros arquitetos e uma minoria interessada que se preocupa com significados especificamente arquitetônicos, e para o público em geral, ou os moradores locais, que se preocupam com outras questões relativas ao conforto, aos aspectos costumeiros da construção e ao estilo de vida”. Ele explica melhor: “a obra de arte ou o edifício pós-moderno se dirigem simultaneamente a uma minoria, uma elite que emprega códigos ‘elevados’ e um público de massa que utiliza códigos populares.”

À primeira vista, tal explicação pode parecer algo esnobe. Quando se diz que um texto tem um segundo significado só compreensível a um número restrito de 'iniciados', é como se estivéssemos a excluir o 'grande público'. Contudo, é preciso lembrar que o leitor comum - emprestando o termo de Virginia Woolf - é capaz de apreciar a narrativa pela própria força da história. Entender as alusões subentendidas é adicionar mais uma camada à interpretação, mas não é indispensável para usufruir da obra que se está lendo.

Pessoalmente, quando percebo numa leitura que existe um duplo significado que não sou imediatamente capaz de apreender, minha reação não é de largar a história pra lá, mas pesquisar para tentar descobrir e ‘captar a mensagem’. Às vezes o código me passa completamente desapercebido, vejo um comentário anos depois e imediatamente me decido por uma releitura, para descobrir como aquela informação vai se encaixar na forma como eu interpretava a história (ou vice-versa: a releitura beneficiada pela experiência de alguns anos após aquele primeiro encontro faz com que eu me toque da trilha de pão escondida na floresta). É uma reação que vai do leitor e do que ele deseja tirar de sua leitura. Voltando a Eco, ele resolve bem a questão:

“Admito que, ao recorrer ao procedimento do duplo código, o autor estabelece uma espécie de cumplicidade silenciosa com o leitor sofisticado, e que alguns leitores comuns, quando não entendem a alusão culta, podem sentir que algo lhes escapa. Mas a literatura, suponho, não se destina apenas a divertir e consolar as gentes. Ela também se propõe a provocar e a inspirar as pessoas a ler o mesmo texto duas vezes, talvez até mesmo várias vezes, porque querem entendê-lo melhor. Por isso, creio que o duplo código não é um toque aristocrático, mas uma maneira de mostrar respeito pela inteligência e boa vontade do leitor.”

Isso me lembra um pouco uma das definições de Italo Calvino para clássicos: Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: “Estou relendo … ” e nunca “Estou lendo …”. O que, por sua vez, faz-me querer citar C. S. Lewis no ensaio Sobre Histórias:

O releitor não está à procura de surpresas reais (que podem vir apenas uma vez), e sim de certo estado de surpresa. [...] No único sentido que importa, a surpresa funciona na vigésima vez tanto quanto na primeira. É a qualidade do inesperado, não o fato, que nos deleita. [...] Nós não apreciamos completamente uma história na primeira leitura. Somente depois da curiosidade, a pura luxúria da narrativa, ter tomado sua sopa e ido dormir é que estamos livres para saborear as verdadeiras belezas. Até então, é como desperdiçar um excelente vinho com uma sede natural insaciável que apenas quer um líquido frio.

Mas o que todo esse arrodeio tem a ver com explicar A Abadia de Northanger? Bem, uma boa pista é abrir o primeiro dos romances maduros (ou o último dos escritos juvenis) de Jane Austen e dar uma olhada na advertência que vem como epígrafe:

Esta pequena obra foi concluída no ano de 1803, com a intenção de que fosse publicada imediatamente. Ela foi vendida a um livreiro, foi até mesmo anunciada, e a autora jamais pôde saber porque motivo o negócio não foi adiante. Parece extraordinário que algum livreiro considere vantajoso comprar algo que ele não considera vantajoso publicar. Esse assunto, porém, não é da conta nem da autora e nem do público, exceto na ressalva de que é necessário observar os trechos da obra que se tornaram comparativamente obsoletos depois de treze anos. O público deve ter em mente que treze anos se passaram desde que ela foi concluída, muitos mais desde que foi iniciada, e que, ao longo desse período, lugares, costumes, livros e opiniões sofreram consideráveis transformações.

Considerando que a crítica muitas vezes a considera escrever num universo divorciado da realidade histórica em que vivia, esse aviso é bastante curioso. Austen parece se preocupar com a possibilidade de que, fora de um determinado contexto, sua história estaria obsoleta, ultrapassada.

Para quem não é familiar com o enredo: a jovem Catherine Morland, leitora voraz de romances góticos, é convidada a acompanhar um casal de vizinhos, os Allen, a Bath, para passar a temporada. Lá, ela conhece os Thorpe - família amiga de seu irmão mais velho, James, que é colega de estudos de John Thorpe - e também os Tilney - enamorando-se não apenas de Henry Tilney como também das possibilidades fantasmagóricas do lar ancestral da família. Catherine é ingênua, sonhadora, e adora a ideia de ruínas abandonadas, passagens secretas e mistérios sombrios. Confundida por herdeira de fortuna considerável, é disputada por Mr. Thorpe e também pelo General Tilney - esse último interessado em casá-la com o filho, Henry.

É dessa forma que Catherine é convidada a visitar a abadia do título, moradia dos Tilney. Impressionada pela história do lugar e da família, ela se deixa levar por alguns arroubos imaginativos, até que o próprio Henry tenha de puxá-la de volta à realidade. Sua real posição social vem à tona e o General, se não é o Barba Azul que ela imaginava, demonstra ser quase tão monstruoso. Mas tudo está bem quando acaba bem e o romance termina com um final feliz.

A despeito da advertência com que se abre o livro, não parece haver nada que torne tal roteiro dependente de contextualização para compreendê-lo. Bem verdade que conhecer os mecanismos do romance gótico - constantemente ironizado ao longo do romance - é indispensável para acompanhar o humor de Austen; mas tais mecanismos são suficientemente clichês para que, mesmo quem nunca abriu Os Mistérios de Udolpho na vida, seja familiar com eles.

Por esse ângulo, aliás, a caracterização do já explicado duplo código é óbvia. A regressão às fontes originais não é difícil porque, para além dos clichês góticos que Austen utiliza tão bem para frustrar sua heroína, ela cita nominalmente - discursando diretamente ao leitor - autores e obras, numa defesa do Romance (aqui de forma geral e não em específico A Abadia de Northanger) que considero uma das melhores coisas desse livro:

Deixemos aos críticos insultar à vontade tais efusões de imaginação, e a cada novo romance lançar seus surrados ataques contra o lixo que hoje faz gemerem as prensas. Não abandonemos uns aos outros; somos um corpo ferido. Embora a nossa produção tenha proporcionado mais amplo e autêntico prazer do que as de qualquer outra corporação literária do mundo, nenhuma espécie de composição foi mais vituperada. Por orgulho, ignorância ou moda, nossos inimigos são quase tantos quantos nossos leitores. E enquanto o talento do nongentésimo compilador da História da Inglaterra ou do homem que reúne e publica num livro algumas dúzias de linhas de Milton, Pope e Prior, com um artigo do Spectator, e um capítulo de Sterne, são elogiados por mil plumas, há um desejo quase universal de vilipendiar e desvalorizar o trabalho do romancista, e rebaixar obras que têm apenas o gênio, a inteligência e o bom gosto para recomendá-las. 'Não sou um leitor de romances... Raramente folheio romances... Não vá imaginar que leio muitos romances... Para um romance, está muito bom.' Essa é a cantilena de sempre. 'E o que anda lendo, Senhorita...? 'Ah! É só um romance!', responde a mocinha, enquanto larga o livro com afetada indiferença ou momentânea vergonha. 'É só Cecília ou Camilla ou Belinda'; ou, em suma, só alguma obra em que se exibem as maiores faculdades do espírito, em que o mais completo conhecimento da natureza humana, o mais feliz traçado de suas variedades, as mais vivas efusões de inteligência e humor são oferecidos ao mundo na linguagem mais seleta.

Ok, então, vamos contabilizar: ironia intertextual fica por conta dos romances góticos, lidos por Catherine e debatidos com vários outros personagens, de Isabella Thorpe a Henry Tilney, bem como dos motivos típicos do gênero; e a metanarrativa é representada pelos apartes da autora sobre a natureza de sua heroína e do romance, àquilo que Austen parece considerar a influência da literatura folhetinesca.

Entretanto, existe algo menos óbvio ao leitor moderno, uma camada a mais para acrescentar à interpretação do livro, algo de que você se dá conta ao perceber que Bath, a cidade em que a história se passa, é personagem importante para a história. São detalhes que os leitores da época em que o livro foi publicado pescariam no ato, por serem de conhecimento social comum, mas que para nós, lendo dois séculos depois, só são descobertos com alguma pesquisa. E sim, esses detalhes explicariam a advertência estampada por Austen na abertura do livro.

Estive em Bath alguns anos atrás e caminhar pela cidade foi um pouco como dar um passo de volta no tempo (e não apenas porque em dois dos museus que visitei pude me vestir com roupas de época)... como estar num lugar que já conhecia e que me era bastante caro. Eu reconhecia nomes de ruas e pontos de referência e pensava com meus botões: “aqui caminhavam Catherine e Isabella; aqui fomos ao baile; aqui se estabeleceram os Croft e Wentworth com eles”. Por si só, Bath vale a visita: é uma cidadezinha adorável, muito florida (pelo menos, quando fui, no final do verão, havia uma quantidade enorme de flores por toda a cidade) e cheia de História - que vai das ruínas do período de conquista romana à movimentação social dos tempos da Regência, quando Bath era o balneário favorito da alta sociedade inglesa. Para janeites, há, claro, um significado maior: Bath é como Meca, um ponto de peregrinação.

A Abadia de Bath, vista das Termas Romanas. Acervo pessoal.

Quando você conhece a cidade e sua História, você percebe o quanto Austen era detalhista em seu realismo. Muito diferente da forma como os críticos a consideram - uma autora divorciada dos acontecimentos ao seu redor, impressão perpetuada pelos parentes com sua imagem da ‘tia Jane’ -, o conhecimento íntimo do cotidiano, da política, da sociedade, perpassa toda a obra austeniana.

Enfim, voltemos à questão de como conhecer a história de Bath ajuda a entender melhor A Abadia de Northanger...

Sempre me intrigou o fato de os Thorpe e o General Tilney acreditarem que os Morland - e, em específico, Catherine - eram endinheirados. Talvez se pudesse desculpar os Thorpe: a informação poderia ter vindo de James Morland, exagerando para os colegas sua própria importância (o que acho improvável, considerando a forma como James se porta quando o temos em cena); mas o general, sendo um homem vivido e ambicioso, não deveria se deixar levar por mexericos. Mais bizarra ainda é a ligação que eles acreditam Catherine ter com os Allen - o alto valor da moça decorreria de ter sido nomeada herdeira dos vizinhos.

As coisas começam a fazer mais sentido quando você descobre que, à época em que Austen escrevia A Abadia de Northanger - entre 1798 e 1799, segundo Cassandra -, estava envolto em mistério a herança de uma enorme fortuna ligada a uma das mais celebradas figuras da história de Bath: Ralph Allen.

Ralph Allen foi um homem que se fez sozinho. Aos 19 anos, viu-se responsável pelo sistema postal de Bath e empreendeu uma grande reforma no sistema postal inglês - que, não apenas tornou a coisa toda mais eficiente como o transformou num homem rico, riqueza que foi multiplicada por investimentos inteligentes ao longo dos anos. Seus lucros com os correios permitiram que ele adquirisse minas de pedras que eram características da região e muito usadas na construção georgiana. As minas lhe renderam outra fortuna, que ele decidiu aplicar no embelezamento de Bath - incluindo aí a construção de uma mansão circundada por jardins repletos de construções pitorescas, com pontes em arco e templos e castelos góticos, projetado, entre outros, pelo poeta Alexander Pope. Prior Park fica no coração de Bath e tem um pouco de tudo o que poderia interessar a Catherine.

Prior Park, vista do Palladian Bridge. Fonte: TripAdvisor.

Quando Ralph Allen faleceu, em 1764, sua vasta fortuna foi passada para sua sobrinha favorita, Gertrude Tucker. Gertrude casou-se duas vezes, sobreviveu ao próprio filho e herdeiro, assim como seu irmão e outros primos da mesma geração. Quando ela faleceu, em 1796, não havia exatamente um herdeiro nominado e Prior Park passou a ser residência de Lorde Hawarden - marido de uma outra sobrinha de Ralph -, mas ele não ficou com a herança. No final das contas, a fortuna foi revertida para os filhos do irmão mais velho de Ralph, por direito de primogenitura. Esses parentes mantinham o sobrenome Allen e moravam na região rural próxima a Bath.

Em outras palavras, quando Austen estava escrevendo A Abadia de Northanger, a mansão construída por Ralph Allen e sua fortuna estavam em debate, mas todo mundo sabia que havia parentes com o mesmo sobrenome que tinham o melhor direito e tomariam em breve posse da herança… mas ninguém realmente conhecia esses Allen. Não é coincidência que Austen nunca mencione o primeiro nome de Mr. e Mrs Allen, os vizinhos de Catherine que a levam para Bath como companhia para a senhora: dando destaque ao sobrenome, ela dá espaço para as conjecturas que levam Mr. Thorpe e o General Tilney a aceitarem que a jovem está em vias de ganhar muito dinheiro.

No capítulo 09, os irmãos Thorpe - John e Isabella - junto com o irmão de Catherine, James, vão buscá-la na casa dos Allen, em Pulteney Street para um passeio a Claverton Down, um subúrbio de Bath. Austen não solta os nomes de ruas aqui à toa: o caminho que eles têm de fazer traz Prior Park o tempo todo às suas vistas (algo que leitores da época ou pessoas familiarizadas com Bath seriam capazes de perceber) e tem por destino a região em que fica o famoso castelo falso construído também por Ralph Allen (embora, pela falta de exclamações de Catherine, é certo que Mr. Thorpe não teve a excelente ideia de levá-la até lá).

Assim, é sob as vistas de marcos arquitetônicos ligados à figura de Ralph que Mr. Thorpe questiona Catherine:

Um silêncio de vários minutos se sucedeu ao primeiro diálogo, sendo quebrado por Thorpe, ao dizer bem abruptamente, “O velho Allen é rico como um judeu – não é?” Catherine não o compreendeu – e ele repetiu sua pergunta, adicionando uma explicação, “O velho Allen, o homem com quem você está”.

“Oh! Você fala sobre o senhor Allen. Sim, acredito que seja muito rico”.

“E ele não tem filho algum?”

“Não, nenhum”.

“Uma coisa muito boa para seus herdeiros próximos. Ele é seu padrinho, não é?”

“Meu padrinho? Não”.

“Mas você está sempre com eles”.

“Sim, muito”.

“Então, foi isso o que eu quis dizer. Ele parece ser um bom tipo de senhor, e viveu muito bem em seu tempo, ouso dizer."

Considerando os minutos de silêncio entre os dois, a velocidade da carruagem (que também é frisada por Austen) e a distância entre a casa dos Allen anfitriões de Catherine e os portões de Prior Park, é bem possível chegar à conclusão de que Mr. Thorpe acha de perguntar a sua companheira sobre a riqueza dos Allen às portas da mansão do homem mais rico da história de Bath, ele mesmo um Allen.

Um pouco antes dessa cena, no capítulo 07, John Thorpe está convidando Catherine para passear até Lansdown Hill (passeio que é substituído sem explicações no dia seguinte para Claverton Down, possivelmente para que eles pudessem passar por Prior Park e com isso fazer Catherine confessar ser herdeira dos Allen) e os dois falam um pouco sobre suas leituras.

“Você já leu Udolpho, senhor Thorpe?”

“Udolpho! Oh, Deus! Eu não. Não leio romances. Tenho mais o que fazer”.

Catherine, humilhada e envergonhada, estava prestes a se desculpar pela sua pergunta, mas ele a impediu ao dizer, “Romances são tão cheios de besteiras e tal; não se publicou um toleravelmente decente desde ‘Tom Jones’, exceto ‘O Monge’; eu o li outro dia; mas quanto a todos os outros, são as coisas mais estúpidas criadas”.

“Penso que você iria gostar de Udolpho, se o lesse; é tão interessante”.

“Não eu, sério! Não. Se eu ler um, será da senhora Radcliffe. Seus romances são bem atraentes. Valem a pena ser lidos. Há diversão e naturalidade neles”.

“Udolpho foi escrito pela senhora Radcliffe”, disse Catherine, com alguma hesitação, por medo de constrangê-lo.

“Não estou certo. Foi mesmo? Ah, lembrei, é dela. Estava pensando naquele outro livro estúpido, escrito por aquela mulher de quem falam tanto. Aquela que se casou com o imigrante francês”.

“Suponho que você se refira a Camilla?”

É muito interessante que Thorpe faça a referência a Tom Jones, tendo em vista que o romance cômico de Henry Fielding foi pelo menos parcialmente escrito em Prior Park - escritores e artistas eram sempre bem-vindos por Ralph Allen. Mais que isso, o viúvo fidalgo e sem filhos que decide adotar um órfão abandonado, Mr. Allworthy, sempre foi considerado como uma homenagem ao próprio Ralph Allen, motivo pelo qual a referência foi colocada em seu túmulo.

Tanto o enredo do romance quanto a ligação de Fielding com Ralph Allen reforçam essas alusões: ao leitor familiar com a história e a geografia de Bath, tais menções são como piscadelas dadas por Austen, piada interna compartilhada.

Conjecturas sobre a fortuna de uma jovem heroína, herdada de parentes distantes e misteriosos, são um clichê de romances góticos. Mas quando você encaixa os fatos históricos apresentados, a cômica suposição de Catherine como futura herdeira dos Allen não parece tão ridícula. Pelo contrário, parece até… razoável.

Irônico, não?

Mr. Thorpe tem outros lugares estratégicos para visitar em sua campanha de sedução da ‘herdeira’ Catherine Morland. O próximo passeio proposto é para o Blaise Castle (grafado erroneamente no texto do livro como Blaize Castle), “uma construção como as de Udolpho”.

"(...) Kingsweston! Ah, e Blaize Castle também, e qualquer coisa que possamos descobrir. Mas eis sua irmã dizendo que não irá”.

“Blaize Castle!”, exclamou Catherine. “O que é isso?”

“O melhor lugar na Inglaterra. Vale a pena percorrer uns 80 quilômetros, a qualquer hora, para visitar”.

“O que é realmente? Um castelo? Um velho castelo?”

“O mais velho no reino”.

“Mas é como aqueles que estão nos livros?”

“Exatamente. O próprio”.

“Mas, de verdade? Há torres e longas galerias?”

“Às dezenas”.

Catherine tinha prometido se encontrar com os Tilney nesse dia. Para convencê-la, Mr. Thorpe mente dizendo que Elinor e Henry não têm como levá-la a passear por conta da chuva e da lama com que o dia começara - e também mente ao falar de Blaise Castle como “o mais velho castelo no reino”. Afinal, à época, ele não era nem velho... ou, sequer, um castelo real. Na verdade, só de olhar para ele, você já percebe que ele não possui nada do que Thorpe insinua no diálogo acima.

Blaise Castle. Por Mike Hardisty.

Construído em 1766 - tendo pouco mais de 30 anos quando da virada do século, época mais provável em que o romance foi escrito - Blaise Castle é um falso pequeno castelo gótico, comissionado por Thomas Farr, mercador de açúcar, inspirado, ora vejam só, no falso castelo que Ralph Allen mandou construir nos jardins de Prior Park, sobre a colina de Bathwick.

Sham Castle de Prior Park. Por buzzard525.

A localização do castelo de Ralph Allen o faz visível dos arredores de Pulteney Street, onde Catherine reside com os Allen. Blaise Castle, segundo os cálculos de Mr. Thorpe, está há 50 milhas (oitenta quilômetros) de Bath, uma viagem considerável para se fazer de carruagem. Por curiosidade, joguei esses dados no google maps, descobrindo que essa seria hoje uma viagem de pouco mais de uma hora de carro, trinta e quatro quilômetros pela autoestrada. É provável que estradas tenham sido construídas de forma mais direta nos últimos 200 anos (e pavimentadas também…) - o maps sugere pelo menos três caminhos possíveis - o que explicaria ter a distância diminuído desde então.

Em Keynsham, o passeio é interrompido. O grupo levou uma hora para fazer sete milhas (onze quilômetros); pelas minhas contas, seriam então cerca de sete horas de carruagem para chegarem a Blaise Castle, isso sem paradas pelo caminho. Um passeio meio impossível para ir e voltar no mesmo dia. Enganoso, pois, nosso torpe amigo Mr. Thorpe, do começo ao fim da jornada. O leitor da época, especialmente o familiar com Bath, saberia desses dados; entenderia as mentiras e exageros do personagem, bem como a dolorosa ingenuidade de Catherine.

O grupo sequer chega a entrar em Kenysham, cidade com potencial para ser uma visita até mais interessante que Blaise Castle. Afinal, ela é lar das ruínas de uma legítima abadia gótica, datada do século XII - um prédio, aliás, conectado à história da família Brydges, que está entre os antepassados da mãe de Jane Austen.

Por outro turno, a precisa observação de Austen sobre ‘a sete milhas de Pulteney Street’ pode ser uma referência a outro local de interesse, um lugar que estaria a essa mesma exata distância, viajando na direção contrária: Farleigh Hungerford Castle. Dei uma olhada no google maps de novo, e a distância hoje continua a mesma (talvez seja até a mesma estrada), sendo um percurso de pouco mais de quinze minutos de carro.

Farley Castle. Fonte English Heritage.

Farleigh Hungerford Castle não apenas seria uma visita mais interessante para a sede de Catherine por construções góticas com histórias ao estilo de Os Mistérios de Udolpho, como é perfeitamente possível que parte da inspiração para a própria abadia de Northanger e a figura do General Tilney - em especial as desconfianças da heroína sobre ele - venham desse castelo e da história que o rodeia.

Em sua longa história - a construção começou em 1377 - Farley Castle foi foco de pelo menos dois grandes escândalos, ocorridos na era Tudor. O primeiro se passou em 1518: Agnes Cotell, esposa de um certo John Cottel, ordenou o estrangulamento do marido para então, viúva, casar-se com sir Edward Hungerford. O corpo foi queimado no fogão da cozinha de Farley Castle. Embora fosse, aparentemente, de conhecimento local a autoria do crime, Agnes permaneceu livre até 1522, quando sir Edward faleceu. Sem a proteção do poderoso marido, Agnes e seus comparsas foram condenados à morte pela forca em Londres.

Há algo de justiça poética nesse destino final da viúva ambiciosa… e também um toque de humor negro quando sabemos desse acontecimento e lemos o trecho em que o general leva sua possível nora num tour pela abadia, a empolgação com que ele mostra a cozinha reformada segundo suas próprias especificações, bem como a expressa menção aos fornos modernos:

Da sala de jantar, a qual, tendo já sido vista, e sempre a ser vista às cinco horas, o general não podia abrir mão do prazer de percorrer sua extensão, dando mais algumas informações para a senhorita Morland, quanto ao que ela não duvidava nem se importava, eles seguiram por uma rápida passagem à cozinha – a antiga cozinha do convento, rica em sólidas paredes e fumaça dos velhos dias, e em fornos e armários aquecidos do presente. O toque de perfeição do general não havia se desperdiçado aqui. Cada invenção moderna para facilitar o trabalho dos cozinheiros foi adotada dentro desse espaço teatral deles. Quando o gênio de outros falhou, o dele próprio produziu a melhora desejada. Seus dotes a este único local poderiam, a qualquer tempo, tê-lo colocado bem alto entre os benfeitores do convento.

A viúva assassina foi sucedida por Lorde Walter Hungerford. Walter se casou três vezes, tendo ficado rapidamente viúvo das duas primeiras. Seu critério de escolha de esposas era as posses e prestígio que a família de cada uma delas tinha junto à corte. Todas as suas mulheres reclamaram de maus tratos, mas foi apenas a última, Elizabeth, filha de um favorito na corte de Henrique VIII (ele mesmo um matador de esposas…) que conseguiu denunciá-lo ao rei e conseguir se salvar.

Segundo o relato de Elizabeth, Lorde Walter a teria aprisionado várias vezes numa das torres do castelo - ação que se repetira por três ou quatro anos - tentando mais de uma vez envenená-la ou mesmo matá-la de fome… o que nos permite conjecturar que as duas esposas anteriores não morreram em circunstâncias normais.

Elizabeth só sobreviveu graças ao auxílio das pessoas em torno do castelo, que lhe levavam água e mantimentos à noite. Ela solicitou o divórcio, numa carta de 1539, endereçada a Thomas Cromwell, um dos mais influentes ministros do reino. Nada foi feito, porém.

As coisas só mudaram quando Cromwell foi preso por traição em 1540. Nessa época, o Conselho Privado do rei passou a investigar Lorde Walter - que era ligado a Cromwell - decidindo-se por condená-lo pelo abuso de sua esposa, feitiçaria - visto empregar padres que teriam denunciado o rei como herético - e por homossexualismo.

Uma curiosidade: Lorde Walter foi o primeiro homem executado na Inglaterra sob o “Acte for the punishment of the vice of Buggerie” (Ato de punição para o vício da Sodomia), de 1533, que previa a pena capital. O único a sê-lo, aliás, em toda a era Tudor, de tal maneira que há quem defenda que a acusação foi feita para humilhá-lo, não sendo verdadeira. O fato de a propriedade de Farleigh Hungerford Castle ter revertido para a coroa com a morte dele provavelmente também contou para se levar a sério as acusações de sua esposa.

Incidentalmente, a primeira esposa - e possível primeira vítima - de Lorde Walter se chamava Susan, nome original da heroína de A Abadia de Northanger antes das revisões de Austen. Pode ser mera coincidência… ou pode ser uma escolha consciente a fazer mais uma ligação com a história de Farley Castle.

Ah, sim, antes que me esqueça… Farley Castle também é famosa por possuir cartas escritas por Oliver Cromwell (o matador de reis, não o ministro de Henrique VIII), descobertas por acaso numa antiga arca... o que, à primeira vista, poderia induzir ao tipo de euforia que Catherine sente ao descobrir os manuscritos misteriosos no baú em seu quarto. Mas, da mesma forma que os escritos de Catherine se revelam mera conta da lavanderia, a missiva de Cromwel é simples agradecimento, sendo sua raridade devida apenas à assinatura de personagem histórico tão controverso.

Há outras coincidências históricas que poderiam ser investigadas e alguma forma de ligação com o enredo do romance poderia ser encontrado: como o fato de que um dos mais famosos mapas de Bath e arredores, muito usado no tempo de Austen, era assinado por um certo Mr. Thorpe ou que, por volta de 1805 - pouco mais de dez anos antes dela revisar seu manuscrito e alterar o nome de sua protagonista - o reino acompanhava com atenção a entrada na sociedade de uma herdeira que valia 25 mil libras de renda ao ano (a título de comparação, a riqueza de Mr. Darcy era de 10 mil libras ao ano), uma herdeira chamada Catherine Tilney-Long. Mas deixo esses detalhes para outro dia.

No final de tudo isso, percebemos que a suprema, hilariante ironia de A Abadia de Northanger é que o leitor moderno o lê como mera sátira do romance gótico,… mas a paródia vai além do enredo e dos clichês do gênero para encontrar na História uma realidade que consegue ser mais gótica que a ficção! Pena que Catherine não se dê conta disso...

“Sim, gosto muito de História”.

“Queria gostar também. Leio um pouco por dever, mas não me diz nada que não me irrite ou me desgaste. As discussões de papas e reis, com guerras e pestes em cada página, e os homens todos, tão bons por nada e, dificilmente, uma mulher; tudo isso é bem cansativo. E, ainda, penso muito que é estranho que isso seja tão monótono, pois muito disso deve ser invenção. Os discursos que são colocados nas bocas dos heróis, seus pensamentos e seus desígnios, a maior parte disso deve ser invenção, e a invenção é o que mais me delicia nos outros livros”.

Os crimes ocorridos em Farley Castle também contradizem muito bem a fala de Henry, quando ele passa seu sermão em Catherine, dizendo que o que ela imagina ter feito o General Tilney à esposa é algo impossível de ocorrer visto serem eles ingleses e cristãos. A afirmação, por si, já espanta (então a soma de tais qualidades faz deles seres humanos perfeitos?), mas quando aplicada a todo contexto apresentado até aqui, talvez necessário seja dar uma puxada de orelhas em Henry também.

“Se a entendi corretamente, você formou premissas de tal horror que eu mal tenho palavras para... querida senhorita Morland, considere a horrível natureza das suspeitas que você acalentou. O que você estava julgando? Lembre-se do país e da época em que vivemos. Lembre-se de que somos ingleses, que somos cristãos. Consulte sua compreensão, seu próprio senso do provável, sua própria observação do que está se passando ao seu redor. Nossa educação nos prepara para tais atrocidades? Nossas leis se conluiam com elas? Podem elas ser cometidas sem serem descobertas, em um país como este, onde o relacionamento social e literário é em tal base, onde cada homem é cercado por uma vizinhança de voluntários espiões, e onde estradas e jornais se abrem em todos os lugares? Querida senhorita Morland, quais ideias você estava admitindo?”

A perda desses fatos históricos de nosso conhecimento comum, contudo, não diminui a força do texto em suas questões mais gerais, no tom de farsa que fica óbvio desde a primeira página, na satisfação de acompanhar o crescimento de Catherine. Conhecer a História adiciona à interpretação do livro, mas não o data, nem o torna menos universal e acessível. São as ‘piscadelas’ de Austen para o leitor curioso.

Voltando à história do duplo código - e também me divirto aqui com a ideia de que o termo se deva inicialmente à arquitetura, quando tanto da interpretação aqui sugerida dependa de um certo conhecimento arquitetônico e histórico de Bath -, Austen constrói aqui um edifício infinitamente mais sofisticado do que comumente pensamos sobre A Abadia de Northanger. Numa primeira camada, existe a sátira aos romances góticos e, na camada seguinte, o reconhecimento de que o gótico não está assim tão distante da realidade, tudo isso combinado para falar do valor do romance como gênero literário, o papel do leitor e como sua interpretação funciona nos limites do texto.

Esse foi o primeiro romance completo de Austen e muitos críticos o consideram uma obra menor, parte da Juvenília da autora. Muito do que Austen desenvolveria em seus livros posteriores começou aqui e não acho que ele deve ser descartado com tanta celeridade. O uso de técnicas criativas que viríamos a categorizar como pós-modernistas já demonstra nesse começo o quanto a autora estava à frente do seu tempo e como é difícil encaixá-la em rótulos e escolas literárias.

Ao final, podemos resumir isso numa simples frase: Jane Austen é única.

Dez Anos em Dez Ensaios: Esse ensaio foi originalmente apresentado como palestra no VII Encontro Nacional da JASBRA, em Timóteo-MG, agora no final de abril. Faz sentido que ao escrever da Austen para essa comemoração, o artigo tenha a ver com a JASBRA, pois meu primeiro especial sobre a autora foi escrito com base nas pesquisas que fiz para uma apresentação no II Encontro Nacional, no Rio de Janeiro, em 2010. À ocasião, meu tema tratava do contexto histórico e social em que os livros tinham sido escritos - tratando especialmente das Guerras Napoleônicas, da situação política na Inglaterra sob a regência do príncipe George e do papel das mulheres nessa sociedade. Voltei, dessa feita, ao tema, mas de uma forma mais fechada, em termos de micro-história; em específico, a cidade de Bath e seus mais notórios habitantes.

VII Encontro Nacional da JASBRA. Acervo pessoal.

Hilariantemente, não foi algo que fiz de propósito: foi pura coincidência a Adriana ter chamado para o encontro e me pedido para falar de Bath enquanto eu estava lendo Matters of Fact in Jane Austen de Janine Barchas (indico fortemente para quem se interessar por ver essas questões histórias em Austen). Cheguei a ela porque vi um artigo sobre o Barba Azul de Farley Castle como possível inspiração para o General Tilney, na revista da Jasna, a Persuasions; e quando vi que havia um livro inteiro da autora sobre o assunto, logo me empolguei. Adoro esse tipo de livro tratando do contexto histórico de uma obra. Aí que emendei com uma pesquisa sobre o Eco, lembrei da história do duplo código, uma coisa foi puxando a outra… e cá estamos!

Especial Jane Austen || Parte I - Parte II - Parte III - Parte IV - Parte V - Parte VI

Persuasão: Uma Análise || Parte I - Parte II - Parte III

Mansfield Park e os Sapatinhos de Cristal - um ensaio sobre como Austen subverte lugares comuns do conto de fadas.

Divagações sobre Mr. Darcy - Diferentes adaptações e pontos de vista sobre o herói de Orgulho e Preconceito.

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A Coruja


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5 comentários:

  1. Foi linda a palestra e me deu a maior vontade de escrever. E de conhecer Bath! Vou começar a ler mais o blog, melhorar minhas leituras e descobrir um mundo todo a parte que eu nunca me dei conta. Acho que sou totalmente superficial com Minhas leituras... Ou então só Lia coisas superficiais e só agora me dei conta disso! Mas vc arrasou como sempre. Texto lindo, apresentação perfeita!

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    1. Oh, Dynha, obrigada! Eu tenho muita vontade de voltar a Bath; quem sabe não é nossa próxima viagem?

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  2. Excelente ensaio, parabéns Luciana, vc brilha!

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