18 de março de 2019

To Say Nothing of the Dog (ou Como Finalmente Foi Achado o Vaso do Bispo)


Porque em torno de um ponto de crise, até mesmo a menor ação pode assumir importância desproporcional ao seu tamanho. As consequências se multiplicam e se transformam em cascata, e qualquer coisa - uma ligação telefônica perdida, uma coincidência durante um blecaute, um pedaço de papel solto, um único momento - pode ter efeitos ruinosos. O motorista do arquiduque Ferdinand faz uma curva errada para a rua Franz-Josef e inicia uma guerra mundial. O guarda-costas de Abraham Lincoln sai para fumar e destrói a paz. Hitler deixa ordens para não ser perturbado porque ele tem uma enxaqueca e descobre sobre a invasão do Dia D dezoito horas mais tarde. Um tenente não consegue marcar um telegrama "urgente" e o almirante Kimmel não é avisado do iminente ataque japonês. “Por falta de um prego, a ferradura foi perdida. Por falta de uma ferradura, o cavalo foi perdido. Por falta de um cavalo, o cavaleiro se perdeu."

Desde que tive meu primeiro contato com Connie Willis, cheguei à rápida conclusão de que queria ler tudo o que essa (incrível) mulher tinha escrito. Comecei pelos contos - cada um melhor que o outro - segui pela monta-russa emocional de O Livro do Juízo Final e no ritmo frenético de Interferências e agora cheguei a To Say Nothing of the Dog que, hilariantemente, foi o primeiro livro que o Enrique (a pessoa que abençoadamente me apresentou à obra dessa criatura) me indicou.

Eu não tinha exatamente expectativas para o livro. Sabia que ele se passava no mesmo universo dos historiadores viajantes do tempo de O Livro do Juízo Final e Vigia de Incêndio, mas que não se tratava de uma continuação. E o Enrique me prometera que era uma história leve, que não arrancaria meu coração do peito e sapatearia em cima como seus predecessores. Fora isso, não me atrevi a tentar descobrir mais sobre o livro, sabendo que Willis já tinha um histórico de subverter o que se poderia esperar.

O gancho inicial da história é a obsessão de Lady Schrapnell em reconstruir a Catedral de Coventry, destruída na Segunda Guerra Mundial, após ler os diários de uma antepassada sua, que afirmava ter tido uma epifania ao visitar a catedral pela primeira vez. Lady Schrapnell passa por sua própria epifania com isso, embora não saiba exatamente o que causou a de sua tataravó, já que o diário da época da visita estava quase ilegível e avariado pelo tempo - motivo para a decisão de reconstruir fidedignamente o edifício (embora ela tenha decidido fazê-lo em Oxford em vez de Coventry…).

A Catedral de Coventry após os bombardeios, em 1940

Como ‘Deus está nos detalhes’, é de extrema importância que seja encontrado o vaso de toco de pássaro do bispo, que estava na Catedral quando dos bombardeios e desapareceu à época, embora não se tenha certeza que tenha sido destruído. Na verdade, considerando o ditado de ‘vaso ruim não quebra’ e a feiúra do objeto, Ned Henry - o protagonista do livro - tem certeza absoluta que o vaso conseguiu sobreviver às bombas e ao incêndio.

Sendo Lady Schrapnell uma americana riquíssima, determinada a conseguir fazer as coisas do seu jeito, e mediante promessas de investimento em pesquisa para o Departamento de História de Oxford, ela consegue tiranizar o sistema de viagens no tempo para colocar todo o mundo girando ao redor do seu projeto - ou, pelo menos, essa é a impressão dos professores, estudantes e funcionários da universidade, submetidos aos caprichos da mulher. Não é difícil fazer a correlação do nome da grande dama com os estilhaços de uma metralhadora atirando em quem estiver em seu raio de alcance…

Ned, que é um historiador especialista na Segunda Guerra, é colocado primeiro para visitar um sem fim de bazares beneficentes atrás do vaso e, depois, para procurar na própria catedral logo após os bombardeios. Afinal, o sistema de viagens no tempo pode não permitir que objetos sejam levados do passado, mas com alguma investigação, talvez seja possível descobrir o paradeiro do vaso no presente. Ao começo da história, Ned já fez tantos saltos para o passado que começa a apresentar ‘lapso temporal’ - cujos sintomas variam de confusão mental e dificuldade de audição até a tendência a falar de forma pomposa e se perder em sentimentalismos.

"Não", eu disse finalmente.

"Lentidão em responder", disse ela no tablet. "Quando foi a última vez que você dormiu?"

"1940" eu disse prontamente, que é o problema com Rapidez na Resposta.

Considerando que, mesmo com viagens no tempo existem certas restrições para o quanto se pode ir, voltar e modificar as coisas; que a data de inauguração da catedral reconstruída está chegando, e que Lady Schrapnell é de opinião que o mundo deve se conformar aos seus desejos e que não existem desculpas capazes de impedi-la - incluindo um potencial diagnóstico de insanidade causada por uma quantidade sem fim de saltos temporais - as chances de Ned de se recuperar do lapso parecem nulas… ao menos até o surgimento de Verity Kindle, historiadora que está estacionada (também às ordens da lady megera) na era vitoriana, investigando a própria tataravó que teve a epifania inicial; e Princesa Arjumand, uma gatinha que definitivamente não deveria estar onde está.

Venha aqui, gato. Você não iria querer destruir o contínuo espaço-temporal, iria? Miau. Miau.

É assim que, sob as ordens do professor Dunworthy (leitores de O Livro do Juízo Final reconhecerão vários personagens da história), Ned vai parar na Oxford vitoriana, onde terá tempo para convalescer de seu lapso temporal logo após cumprir uma importante missão… da qual ele não se lembra de jeito nenhum.

Eu nunca ia conseguir dormir. Eu ia ter conversa de 'Alice no País das Maravilhas' após conversa de 'Alice no País das Maravilhas' até morrer de exaustão. Aqui, na tranquila e idílica era vitoriana.

Isso tudo é só o começo da história. Mas, embora o enredo seja interessante, com mistérios dentro de mistérios, a verdade é que lemos To Say Nothing of the Dog mais pelo elenco de personagens que pelos acontecimentos da história - que, às vezes, parece uma competição para ver quem mete o pé na jaca com mais gosto. Não é que não exista um enredo, mas sim que este está em segundo plano frente à caracterização. Willis gosta de brincar com estereótipos - e esse livro está cheio deles -, mas consegue criar personagens cativantes, divertidos, ainda capazes de nos surpreender a despeito do molde. De quebra, ainda tem o Cyril, o cão do título, que merece uma menção só dele por ser o personagem de mais bom senso na história.

Willis transita por gêneros com uma facilidade de fazer inveja. Suspense, comédia de costumes, romance, ficção científica, drama de guerra, tudo encontra sua vez sem que a coisa fique parecendo uma colcha de retalhos. Considerando os saltos temporais, faz sentido que diferentes épocas tragam diferentes sentimentos para dentro da história.

Para além disso, há uma miríade de referências literárias, que começam do título - baseado no livro de Jerome K. Jerome Three Men in a Boat - e passam por P. G. Wodehouse e seu famoso mordomo Jeeves, os romances policiais de Agatha Christie, Dorothy L. Sayers e Oscar Wilde. Wilde, aliás, serviria como uma excelente comparação: Willis está aqui escrevendo o seu próprio A Importância de ser Prudente, exceto que no presente caso seria a importância de ser Mr. C..


Na superfície, To Say Nothing of the Dog é puro deleite, dos contrastes entre diferentes épocas ao tom de sátira. Em certa medida, pode até ser lido como uma resposta à carga emocional de O Livro do Juízo Final, com a forte simbologia religiosa do primeiro livro substituída por uma visão mais pragmática e por vezes até ridícula da religião - a reconstrução da catedral tem motivação mais egoísta que mística e a caricatura de Lady Schrapnell torna a coisa toda um festival de horrores. Mas, lendo com um pouco mais de atenção, dá para entender que Willis não estava interessada apenas em provocar risos descendo o Tâmisa num bote.

Um detalhe constantemente frisado ao longo do livro é que é impossível mudar o passado. O Tempo é capaz de se proteger, inclusive não permitindo o acesso a pontos fixos importantes para a construção da História. Nenhum viajante é capaz de visitar Coventry no exato momento do bombardeio para descobrir o que aconteceu com o vaso do bispo - algo que tem a ver com a decodificação do código Enigma, dos nazistas -, assim como não é possível chegar a Waterloo para a grande batalha de Wellington e Napoleão. Também é impossível voltar através da rede trazendo objetos do passado. Se, de alguma forma extraordinária, um historiador fosse capaz de alterar algo (como trazer um gato, espécie extinta na Terra, do passado para o presente), isso geraria uma incongruência e um efeito cascata em que o Tempo faria de tudo para corrigir os fatos e manter a História.

Considerando o fato de que o livro começa com uma incongruência, logo descobrimos que o impossível não é assim tão difícil de conseguir. Os eventos que se sucedem, as trapalhadas de Ned e Verity tentando consertar o passado após influenciarem em encontros que deveriam ter ou não ocorrido, podem ser interpretados como escolhas conscientes dos personagens… ou ações do Tempo num Grande Plano para consertar uma Incongruência Original. E é aí que você se dá conta de que, por trás do riso fácil (facílimo), no cerne da história há um grande debate sobre a questão do Livre Arbítrio.

O quanto os personagens estão constritos por padrões de comportamento necessários para manutenção da História e o quão livres são eles realmente? Se existiu uma incongruência maior que deu origem a um efeito cascata, então alguém teve liberdade suficiente de fazer algo para mudar o Grande Desígnio. Quem tem a Vontade Maior: o Tempo (que aqui se coloca no lugar de alguma divindade onisciente) ou as pessoas que fazem parte da História? E se as pessoas têm maior poder de decisão, o fato de elas poderem alterar o passado significa que elas podem destruir o Universo como conhecemos?

Dá para se perder em reflexões, hum?

Embora seja um livro grande - são quase quinhentas páginas - To Say Nothing of the Dog passa sem que você se dê conta do quanto já leu. Eu perdi a noção do tempo lendo e, ao terminar, meu desejo era que o calhamaço tivesse ainda mais páginas - ou que houvesse uma continuação com mais aventuras de Ned e Verity, se possível com Cyril a tiracolo. Ainda há mais dois volumes na série, mas são livros independentes, que apenas se passam no mesmo universo (e que viajam para o tempo da Segunda Guerra, motivo pelo qual desconfio que não serão nenhum passeio de barco pelo Tâmisa…).

História era de fato controlada por forças cegas, bem como por caráter e coragem e traição e amor. E acidentes e chances aleatórias. E balas perdidas e telegramas e pistas. E gatos.

Até onde eu saiba, infelizmente, não há previsão de quando esse livro vai ser lançado em português. Não sei quão bem foram no mercado os dois títulos que a Suma lançou aqui no Brasil, então, com a crise do mercado editorial, fica difícil apostar que saia logo. Mas espero que ele seja publicado e assim, mais gente tenha oportunidade de ler essa mulher incrível que é a Connie Willis.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica

Título: To Say Nothing of the Dog, or How We Found the Bishop's Bird Stump at Last
Autor: Connie Willis
Editora: Gollancz
Ano: 2013

Onde Comprar

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A Coruja


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2 comentários:

  1. Siiiiiiim! Bah, que ótimo que você leu e gostou desse livro - e sua resenha está fenomenal como sempre, dona Luciana! (E você ter lido por último o primeiro livro que eu indiquei é muito Connie Willis, hehehehe)

    Concordo quando você diz que o elenco de personagens é que vão puxando nossa leitura, mais do que o enredo - eu adoro todas as bagunças, desencontros e acidentes, mas são os personagens que me ganharam. Até personagens secundários que aparecem relativamente pouco (Finch), ou mesmo os personagens de alívio cômico (Tossie, os pais da Tossie, a médium) tem um carisma especial. Isso sem mencionar o protagonista, aquele repositório de carisma, bom senso e dignidade compactado em um corpo de bulldog - Cyril, meu herói! Ah, e sou totalmente a favor de uma série de livros de mistério/suspense com Ned e Verity, detetives temporais - devidamente acompanhados de Cyril, claro :D

    (Por causa desse livro eu fui ler PG Woodehouse e Three Men in a Boat - ainda preciso me aventurar pelo Oscar Wilde, talvez esse ano eu faça isso!)

    Sobre os dois próximos livros - não são um passeio pelo Tâmisa, mas são surpreendentemente otimistas. Mesmo com bombas caindo de todos os lados, dona Willis consegue mostrar o lado bom da humanidade - sei lá, de quando em quando é tudo que eu preciso de um livro, rs. São livros sobre...resiliência, eu acho. Já ouviu aquela anedota da loja que sobreviveu por um triz a um dos bombardeios durante a Blitz, e que abriu no dia seguinte com um cartaz enorme: "Nem Hitler conseguiu derrubar essas promoções!"?

    Enfim, fico feliz que você tenha lido e gostado! :D

    Próxima dica: já leu "A Quinta Estação", da N.K. Jemisin? É minha nova série favorita de ficção/fantasia, e mostra a perspectiva de três mulheres em três períodos diferentes da vida vivendo em um mundo pós-apocalíptico (na verdade pós-antes-pra-sempre-apocalíptico) :O

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    1. Eu já tinha lido o Woodehouse tempos atrás - tenho até que voltar a ele - mas não peguei o Three Men in a Boat, embora tenha ficado curiosa... "A Importância de ser Prudente" eu super indico, é deliciosamente nonsense. Tem um ótimo filme adaptando a história, daqueles que te faz passar uma tarde bem leve.

      Estou ansiosa agora para começar Blackout e All Clear... Mas tenho que dar vazão a uns outros que estão na frente, vejamos no que vai dar...

      E sim, a Jemisin está na minha lista! Claro que vou colocar ela como prioridade agora, porque suas dicas são sempre excelentes!

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