19 de outubro de 2018

Desafio Corujesco 2018 - Uma História que te Provoque Risos || Interferências


Ela olhou com expectativa para a mão dele, que estava ao lado do livro. Você não precisa disso, disse ele, e, quando viu que ela ainda hesitava: Confie em mim. Apenas ouça.

E ela ouviu, segurando com força a beirada da mesa com as mãos, e preparando-se para enfrentar, amedrontada, a onda avassaladora de vozes que viria.

Mas não veio. As vozes não tinham ido embora, mas já não vinham em turbilhão para coma dela, inundando-a. Estavam mais calmas, mais silenciosas, como o murmúrio de um córrego inofensivo. Ela olhou para C. B., espantada.
Como você fez isso?

Não fiz, respondeu ele, apontando com a cabeça na direção das outras pessoas sentadas às mesas compridas. Eles fizeram.

Mas como...?

Ele sorriu.
Nunca subestime o poder de um bom livro.

Descobri Connie Willis há três anos, por indicação de um amigo, e desde então a coloquei naquela lista de ‘autores que quero ler toda a bibliografia’. De seus contos às noveletas e romances, tudo dela com que já tive contato não apenas me deixou fascinada como também surpreendeu. Assim, não é à toa que, tão logo Interferências apareceu em pré-venda, saí correndo para reservar o meu (embora tenha demorado um pouco para começar a lê-lo efetivamente).

E sim, mesmo com todas as expectativas que eu tinha para o livro - e elas eram bem altas - a Willis conseguiu mais uma vez. Plot twists abundam nesse livro.

Interferências conta a história de Briddey Flannigan, cujo namorado, Trent, executivo da empresa em que ela também trabalha, propõe que eles passem por um EED, um procedimento cirúrgico capaz de ampliar a conexão emocional de um casal, com um parceiro recebendo as emoções do outro. A fofoca logo se espalha pelo escritório - uma empresa de tecnologia especializada em smartphones - até cair nos ouvidos de C. B. Schwarz, o “corcunda de Notre Dame”, ou, mais exatamente, o principal desenvolvedor de aplicativos e outras ideias para a Commspan. C. B., com seus cabelos eternamente bagunçados, camisetas nerds, fones no ouvido e olhar perdido, tenta de todas as formas convencer Briddey a desistir da cirurgia, ao passo que Trent se mostra extremamente ansioso para tal comprometimento.

Com muito esforço, Briddey consegue escapar do escrutínio da família irlandesa intrometida e superprotetora de Briddey e de seus colegas de trabalho abelhudos, e ela e Trent passam pela cirurgia… mas as coisas não saem exatamente como o esperado, e alguma interferência de conexões neurais ou coisa parecida acabou ligando a ruiva telepaticamente a… C. B. Schwarz.

Num primeiro momento, você pode pensar que Willis está criando uma grande romcom, mas, como eu disse antes, ela sempre consegue te surpreender, mesmo quando parece extremamente óbvia. Interferências passeia por diferentes gêneros, do romance à comédia de costumes, à ficção científica (e as explicações sobre o EED, telepatia, genética e outras tecnologias fazem muito sentido) e o thriller. Entre espionagem corporativa, experimentação humana e zumbis, há um pouco de tudo, sem que haja rupturas nas transições de tom que vão surgindo ao longo do enredo. Talvez isso afaste alguns leitores, que tenham chegado ao livro por preferirem um determinado e único gênero, mas pra mim, pelo menos, funcionou.

Além da multiplicidade de gêneros literários, Interferências tem também um elenco colorido, vibrante, apaixonante. Eu me identifiquei demais com Briddey, com seu misto de exasperação e afeto pela família, embora tenha torcido o nariz para a forma como ela trata o C.B. no começo da história. E isso não se restringe aos protagonistas: Willis consegue dar corpo a todos os personagens que aparecem no caminho da ruiva (Maeve!). Tendo engatado minha leitura a partir do terceiro capítulo, não consegui depois disso largar o livro, desesperada para saber qual seria o desastre seguinte. Dei gargalhadas, torci, xinguei e suspirei e, ao final, não nego, fiquei com gosto de quero mais.

Eu também gostaria que alguém fizesse o celular Santuário do C.B., porque aquelas funções de S.O.S. para te livrar de conversas que você não quer ter e gente que não quer atender eram coisas que queria na minha vida.

Para além da diversão, Interferências também é um livro para refletir. Willis trata muito bem da enxurrada de informações que temos hoje em dia, da disseminação de notícias falsas por redes sociais, da hiperconectividade que nos faz ficar ‘ligados’ 24 horas por dia sete dias por semana. A telepatia de Briddey é um recurso potente para falar disso, e não é uma coincidência que concomitante ao plot principal corra a história de como a Commspan está tentando fazer um smartphone para concorrer com a Apple (a miríade de referências reais também me fez rir…) que revolucione a forma como conversamos e nos conectamos (e nunca possamos parar). Talvez por isso mesmo o ritmo de leitura acabe se tornando tão frenético, porque, como Briddey, somos constantemente atacados por todos os lados, o dilúvio de conexões é algo que sofremos com ela. Houve momentos em que senti um princípio de pânico com tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo - mas, pelas outras obras de Willis que já li, creio que essa seja uma sensação esperada para o estilo dela (dica: ela gosta de cenários catastróficos).

Normalmente fico contente quando um livro se encerra em si mesmo, sem fazer parte de uma trilogia ou decalogia, ou uma série de número infinito de livros onde o final nunca parece chegar. Mas, sério, eu gostaria de ler mais no universo de Interferências. Alguns contos talvez. Queria ver o que acontece na Commspan depois da história do EED ser revelada; queria ver as Filhas da Irlanda numa reunião; queria ler uma história inteira da Maeve, a sobrinha de nove anos da Briddey, sendo precoce e caçando zumbis vestida de princesa da Disney. Na falta, fico agora na expectativa de qual será o próximo livro da Willis a ser lançado por aqui (ou então vou atrás dos volumes em inglês mesmo…).

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica

Título: Interferências
Autor: Connie Willis
Tradução: Viviane Diniz Lopes
Editora: Suma
Ano: 2018

Onde Comprar

Amazon


A Coruja


____________________________________

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sobre

Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.

Cadastre seu email e receba a newsletter do blog

powered by TinyLetter

facebook

Arquivo do blog