24 de outubro de 2018

All Hallow’s Read - Edgar Allan Poe como um personagem de Poe


Edgar Allan Poe teve uma vida quase tão movimentada e misteriosa quanto o enredo de suas obras. Os pais eram atores - o pai, David, era americano e a mãe, Eliza, inglesa. Os dois se casaram em 1806 e tiveram o primeiro filho, William, em 1807. Edgar nasceu em janeiro de 1809, numa época em que a família passava por dificuldades financeiras, causadas, sobretudo, pelo alcoolismo de David Poe, que os abandonou quando o escritor ainda era um bebê. Eliza estava mais uma vez grávida quando o marido desapareceu, e em dezembro de 1810 nasceu Rosalie Poe. Um ano depois, Eliza faleceu, de tuberculose.

Os irmãos foram separados e Edgar, adotado - embora não de forma oficial - por John e Frances Allen, com quem viveu até a juventude, quando conflitos sobre débitos de jogo, álcool (a essa época Edgar já exagerava nos copos que virava) e custos da universidade fizeram com que ele saísse de casa. A relação de Edgar com Frances sempre fora próxima e afetuosa, mas bastante tensa com o pai adotivo.

Em 1827, o jovem se alistou no exército sob um nome falso, e pela mesma época começou sua carreira como escritor, publicando, de forma anônima, um livro de poesia: Tamerlane e outros poemas.

A morte da mãe adotiva em 1829 - Frances também teve tuberculose - logrou uma breve reaproximação, mas quando Poe revelou a John Allen que planejava se tornar um poeta e abandonar a academia de oficiais, que estava cursando em West Point, os dois romperam de forma definitiva. Bom observar que o jovem Edgar, então com 20 anos, organizou as coisas de forma a passar por uma corte marcial e ser expulso da academia. Livre do exército e de John Allen, Edgar seguiu para Baltimore para viver na casa da avó materna, onde também viviam o irmão, William, uma tia viúva e os filhos desta, Henry e Virginia.

William era marinheiro e poeta, com um estilo literário muito parecido ao do irmão - alguns dizem que os dois chegaram a colaborar em algumas dessas histórias. Era também um alcoólatra e, como parece ser a sina e maldição dos Poe, morreu de tuberculose em 1831.

Quatro anos depois, já tendo publicado outros livros de poesia, uma peça de teatro, e alguns contos (Manuscrito encontrado numa garrafa é dessa época e chegou a vencer um prêmio literário), Poe, que se apaixonara pela prima Virginia, conseguiu uma licença para casar com a jovem. Ele tinha então vinte e seis anos e ela, treze. Alguns biógrafos afirmam que o casamento foi totalmente platônico e eles agiam mais como irmãos que marido e mulher. Virginia contraiu tuberculose em 1842 e sua saúde declinou pouco a pouco, num longo calvário, até sua morte em 1847, aos 24 anos.

Virginia foi particularmente afetada pelo escândalo envolvendo o nome do marido e duas outras poetisas da época, Frances Sargent Osgood e Elizabeth F. Ellet. A história toda é meio delicada: Frances era amiga dos Poe e frequentava a casa, inclusive por convite de Virginia, que via a amizade da moça como um elemento estabilizador para o marido. Edgar, afinal, deixara de beber por influência dela. Sabendo-se perto da morte, Virginia provavelmente estava também atrás de uma substituta para seu lugar. O fato de Osgood ser casada - ainda que separada do marido, Samuel - não era um problema, nem mesmo para o marido descartado da história. A parte irônica da escolha de Frances como substituta de Virginia fica por conta da poetisa já apresentar no período sinais de… tuberculose - ela morreria em 1850, após o próprio Poe.

Tudo poderia ter ido muito bem, não fosse a intromissão de Elizabeth Ellet na história. Ellet tentara alguns avanços sobre Edgar, que a rechaçou. Com o orgulho ferido, Ellet começou a espalhar boatos sobre o escandaloso romance de Edgar e Frances sob as vistas de Virginia; quase provocou um duelo entre seu irmão e o escritor; foi forçada a se retratar por Samuel Osgood, mas continuou afirmando que toda a celeuma se devia a cartas forjadas por Poe, que era ‘conhecido por seu temperamento difícil e insano’. Os rumores espalhados por Ellet sobre a insanidade de Poe, que a essa altura já ficara famoso, com a publicação de O Corvo, chegaram aos jornais. Frances voltou para Samuel, o que acabou com a parte do escândalo que envolvia a mulher, mas Ellet continuou destilando veneno, sendo a provável autora de muitas das cartas anônimas enviadas a Virginia, contando das ‘traições’ de Edgar.

Não à toa, em seu leito de morte, Virginia afirmou que Ellet fora sua assassina.

Por essa mesma época, Poe ganhou a inimizade de Rufus Wilmot Griswold, que competia com ele pelos afetos de Frances Osgood (e Rufus também foi vítima de um escândalo forjado por Ellet tempos depois…). Marquem o nome: Griswold ainda voltará a aparecer na história para jogar lenha na fogueira.

Então, façamos as contas: Edgar Allan Poe perdeu para a tuberculose a mãe biológica e a mãe adotiva, o irmão mais velho (que se diz, morreu no quarto que dividia com Edgar, que possivelmente testemunhou a morte) e a esposa. Foi abandonado pelo pai biológico (que, considerando a época e a trajetória da família, não me espantaria se tivesse morrido de tuberculose também…), maltratado e deserdado pelo pai adotivo.

A morte de Virginia marcou o começo do fim para Edgar. Ele afundou no alcoolismo - como seu pai e seu irmão tinham feito antes dele. Chegou a reencontrar uma namorada de juventude, quando ainda vivia com os Allen e os dois reataram, até marcando casamento. Contudo, em 03 de outubro de 1849 - dez dias antes do enlace - ele foi encontrado delirante, em roupas que não lhe pertenciam, andando a esmo pelas ruas de Baltimore. Levado para o hospital, sobreviveu ainda quatro dias, mas nada do que disse serviu para elucidar o que acontecera. A causa da morte nunca foi esclarecida; relatórios médicos e mesmo seu atestado de óbito desapareceram. Muitas teorias surgiram com o tempo, de suicídio a excessos alcoólicos e mesmo vítima de uma fraude eleitoral, já que era dia de eleição quando ele foi encontrado (havia um costume à época de sequestrar e drogar pessoas e forçá-las a votar em vários lugares diferentes. Simpático, não?).

Dois dias após a morte de Poe, foi publicado um obituário denegrindo a imagem do autor. Chamado de ‘estrela brilhante, mas errática’, o texto era assinado por um tal Ludwig, que posteriormente se revelou como sendo… Rufus Wilmot Griswold. Não contente com o obituário, Griswold escreveu uma biografia em que afirmava ser Poe um depravado, viciado em ópio além de alcoólatra, arrogante, paranoico, insano, apresentando com provas cartas que depois se revelaram forjadas.

Edgar Allan Poe está morto. (...) Este anúncio surpreenderá muitos, mas poucos serão sofrerão com isso. O poeta era bem conhecido, pessoalmente ou por reputação, em todo este país. Ele tinha leitores na Inglaterra e em vários estados da Europa Continental; mas tinha poucos ou nenhum amigo; e os pesares por sua morte serão sugeridos principalmente pela consideração de que, nele, a arte literária perdeu uma de suas mais brilhantes, mas erráticas estrelas.
(...)
Ele era, por vezes, um sonhador, habitando em reinos ideais, no céu ou no inferno, povoados com criações e acidentes de seu cérebro. Ele andava pelas ruas, em loucura ou melancolia, com os lábios se movendo em maldições indistintas, ou com olhos voltados em orações apaixonadas pela felicidade daqueles que, naquele momento, eram objetos de sua idolatria, mas nunca por si mesmo, pois ele sentia, ou professava sentir, que já estava condenado. Ele parecia, exceto quando alguma caprichosa demanda sujeitava sua vontade e absorvia suas faculdades, carregar sempre a lembrança de uma tristeza controlada.
(...)
A paixão, nele, compreendia muitas das piores emoções que militam contra a felicidade humana. Você não poderia contradizê-lo, ou rapidamente o encolerizaria. Não poderia falar de riqueza, que suas bochechas empalideceriam de inveja. A assombrosa vantagem natural desse pobre meninos, sua beleza, sua prontidão, seu espírito ousado que respirava ao seu redor como uma atmosfera ardente, elevaram sua autoconfiança natural a uma arrogância que transformava suas próprias pretensões de admiração em preconceito contra ele. Irascível, invejoso, ruim o suficiente, mas não o pior, pois todos esses ângulos salientes estavam envernizados com um cinismo frio e repelente enquanto suas paixões desafogavam-se em desdém. Não lhe parecia haver qualquer suscetibilidade moral. E, o que era mais notável numa natureza orgulhosa, pouco ou nada de um verdadeiro sentido de honra. Ele tinha, num mórbido excesso, aquele desejo de ascender vulgarmente chamado ambição, mas nenhum desejo pela estima ou pelo amor de sua espécie, apenas o duro desejo do sucesso, não de brilho ou servir, mas triunfar, e assim ter o direito de desprezar um mundo que ofendera sua presunção.

- obituário de Edgar Allan Poe, por “Ludwig” -

A imagem distorcida criada por Griswold para o desafeto acabou se tornando a mais aceita popularmente para Poe, embora tenham existindo inúmeras tentativas de retificá-la. O fato de Griswold ter sido nomeado executor literário de Poe - não se sabe se por fraude ou engano ou se Edgar realmente achou que a melhor pessoa para cuidar de seu legado era um inimigo declarado - dava mais peso às suas declarações, e assim é que Griswold fez tudo o que podia para assassinar a reputação do rival. Considerando o humor de Poe e seu gosto por embustes - em 1844 ele publicou como uma história real, no jornal The Sun, uma artigo sobre um viajante que teria atravessado o Atlântico num balão de ar, tendo causado furor até ser revelado que tudo não passava de ficção - talvez ele até tivesse achado graça na biografia de Griswold, especialmente a se considerar que em vez de afastar os leitores de Poe, a imagem de gênio insano e artista atormentado apenas aumentou sua fama.

Enfim, nada como uma vingança servida fria a cadavérica mediante fraude e documentos forjados que, num plot twist faz a vítima difamada se tornar mais famosa, para adicionar mais um item à coluna que identifica Poe como… um personagem de Poe. Talvez não um de seus narradores mais insanos e homicidas, mas é bem certo que Poe se identificava ao menos um pouco com Dupin, o primeiro detetive dos romances de detetive: ele tinha uma mente aguçada, observadora, gostava de enigmas, criptografia - lembrem-se das engenhosas cifras de O Escaravelho de Ouro - e de um bom mistério (e não foi, ele mesmo, um mistério?).

Dito tudo isso, a grande pergunta é… por que ler Edgar Allan Poe? Um autor não se torna tão icônico, lido e comentado só porque sua história de vida é muito louca. É o mérito de sua obra, mais que sua biografia que faz com que seu nome continue a ser celebrado quase duzentos anos após sua morte (embora não seja difícil de compreender o quanto as perdas e os demônios que perseguiram Poe durante sua existência influenciaram sua obra...).

Poe foi um expoente da literatura romântica, parte daquilo que, no Brasil, ficou conhecida como a geração do ‘mal-do-século’, os ultrarromânticos. Tinha um pé no gótico, ao qual incorporou a psicologia, mas passeou por muitos gêneros: sátiras, humor, ficção científica… Foi o pai do romance policial, antes que se tivesse ouvido falar em Sherlock Holmes e Hercule Poirot. Nos Estados Unidos, era mais conhecido pela crítica literária ácida, do tipo que criava feudos com os autores criticados; sua ficção foi mais admirada na Europa, especialmente pela tradução entusiasmada de Charles Baudelaire.

Foi um dos primeiros autores americanos a decidir viver de sua escrita - além da crítica e da ficção, foi editor de diversos periódicos -, isso numa época em que não existiam leis sobre direitos autorais, de tal forma que sua fama pouco lhe rendeu financeiramente. Era um mestre, sobretudo, em contos e poemas narrativos, tendo escrito um único romance, O Relato de Arthur Gordon Pym. Poe não gostava do formato: tudo que fosse longo o suficiente para que o leitor não fosse capaz de começar e terminar em sequência perderia o efeito de suspense; a totalidade da narrativa seria truncada e não obteria o mesmo impacto.

E impacto é um ponto importante do movimento romântico, no qual podemos encaixar Poe. O Romantismo dá ênfase a emoções exacerbadas como fonte da experiência estética. Quanto mais intensos forem os sentimentos causados por uma obra - seja horror ou admiração - tanto melhor ela será.

O talento de Poe para o suspense se somou à forma como ele introduz o componente psicológico aos temas classicamente góticos. Boa parte de suas histórias mais famosas são narradas em primeira pessoa, com o protagonista - muitas vezes sem nome - contando os acontecimentos, dando sua versão dos fatos. São narradores não confiáveis, não apenas por filtrarem os fatos a partir do que eles querem que seu interlocutor - o leitor - acredite, como também pela possibilidade de estarem sob efeito de psicotrópicos. Álcool e ópio aparecem com certa frequência, mesmo na periferia dessas narrativas, e pouco temos que nos diga que esses narradores não estejam inebriados. Mesmo seus monólogos interiores, seus pensamentos mais profundos, são algo em que não podemos confiar completamente, e essa ambiguidade, essa incapacidade de reconhecer real e espectral é fascinante.

Esse componente psicológico é importante também porque torna mais crível os fatos apresentados nessas histórias: os espectros que passeiam por suas páginas podem ser explicados tanto por causas sobrenaturais, como ter suas raízes nos cantos mais obscuros da mente desses narradores. O Gato Preto é um excelente exemplo para isso: você pode escolher interpretar tudo como fruto da culpa carregada pelo personagem ou acreditar no retorno do gato morto para conseguir justiça.


Poe conhecia a fundo a capacidade para sordidez do ser humano. Ele entendia o peso da perda, da solidão, da traição, do abandono, da miséria. Era, afinal, a experiência que ele tivera, praticamente desde o nascimento. E está tudo em sua obra. Suas mulheres etéreas e enfermiças, o espectro da morte - uma morte rubra, com o sangue escarrado pelos tubercolosos de sua vida - e da insanidade; o desejo homicida de vingança; o ímpeto para o crime; os duplos que representam mais que antagonistas, mas as facetas mais sombrias do próprio narrador; o grotesco e o macabro em contraponto a belezas pálidas fora de alcance.

Ele conseguiu criar imagens perenes, poderosas, inescapáveis. O corvo que repete nunca mais é algo que já entrou para o imaginário coletivo, e que será reconhecido mesmo por quem nunca leu o poema. São muitos os emparedados no folclore de todo o mundo, mas não acho que haja algum mais icônico e perturbador que o infeliz Fortunato, de O Barril de Amontillado. A imagem refletida do casarão no lago nos persegue muito depois de terminado A Queda da Casa de Usher, bem como a lembrança da jovem enterrada viva. E como esquecer da intensidade sufocante, claustrofóbica de O Coração Delator e O Poço e o Pêndulo?

Com Bram Stocker e Mary Shelley, Poe é um dos autores mais importantes do início da literatura de horror. Ele serviu de inspiração para gente como Herman Melville, Jules Verne, Oscar Wilde, Arthur Conan Doyle e, claro, Lovecraft - isso para não entrar nos autores modernos, que certamente bebem de sua fonte. Por tudo isso, não há como negar que Poe seja um marco, talvez um divisor de águas. Curiosamente, a crítica especializada não gosta muito do autor, considerando-o verborrágico (uma qualidade totalmente chocante para um escritor, óbvio....), excessivamente adjetivo. Há quem o ache entediante. É uma questão de gosto - não me lembro de minhas reações à primeira vez que encontrei o autor, mas mesmo em releituras, ele continua me fascinando, e mantendo num estado de suspense e ansiedade. E não estou preocupada com questões de mérito literário, tão caras às listas canônicas de acadêmicos rabugentos. Poe sabia contar histórias. Ele sabia jogar para sua platéia. Independente do que tenham dito seus detratores, ele continua sendo lido e relido, amado ou odiado, lembrado constantemente.

Por tudo isso, fica a conclusão: dele, jamais diremos, nunca mais, nunca mais...


A Coruja


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Um comentário:

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