29 de maio de 2018

Por Nárnia! || Parte V: Problemático e Inspirador (ou conclusões narnianas)


Eu não era exatamente uma criança - supostamente, o público alvo da obra - na época em que li As Crônicas de Nárnia pela primeira vez. Mesmo assim, a história teve um profundo apelo emocional para mim. Tinha recém-entrado na faculdade, era a caçula nas minhas duas turmas (porque eu estava fazendo dois cursos pesados ao mesmo tempo), e tinha certeza de que abocanhara mais do que conseguia mastigar. Nárnia respondia à minha necessidade de histórias, de fantasia, de conforto e de esperança.

Reler os livros agora, mais de uma década depois, foi uma experiência diferente: bem mais crítica, mas não menos mágica. Se posso hoje enxergar momentos em que Lewis apressa a narrativa, deixando-a por vezes truncada; por outro também consigo apreciar mais o ritmo e a poesia de sua prosa - uma prosa a ser saboreada, lida em voz alta, na melhor tradição dos velhos bardos contadores de histórias -, bem como as referências alegóricas que provavelmente me passaram batidas naquela ocasião.

Mais que questões de estilo, porém, há o debate sobre os vários preconceitos presentes na obra. Entendo o ponto de onde surgem esses questionamentos, e posso enxergar explicações a partir da biografia do Lewis. Claro que compreender que o autor é um produto de sua época não significa ler de forma acrítica; da mesma forma, censurar uma obra porque ela não se conforma com nossa sensibilidade moderna é tentar tapar o sol com uma peneira - fingir que a História não aconteceu e se recusar a aprender com os erros do passado. Enfim, vamos ver a que conclusões somos capazes de chegar explorando essas questões.

O primeiro ponto de crítica nas Crônicas de Nárnia é o problema do racismo. Em O Cavalo e seu Menino somos apresentados aos calormanos, da nação vizinha a Nárnia - um povo belicoso de pele escura, usando turbante e túnicas de seda, adoradores de um deus chamado Tash, governados por uma monarquia teocrática e uma burocracia fortemente hierárquica. Por um lado, a Calormânia tem uma bela tradição de contadores de histórias e poetas; por outro, a linguagem, com suas fórmulas arcaicas e ditos populares, é utilizada como ferramenta de controle, para dar um verniz de civilidade a um sistema social escravocrata e imperialista.

Os calormanos são constantemente comparados aos narnianos de pele clara, representantes da verdadeira civilização - uma civilização, acima de tudo, de homens livres; de linguagem simples, mas direta e sem subterfúgios. Sua cobiça e ambição faz deles também os grandes vilões de A Última Batalha, parcialmente responsáveis pelo fim do mundo do qual Nárnia (e a própria Calormânia) faziam parte.

É fácil enxergar as descrições que Lewis faz dos calormanos - e também as ilustrações de Pauline Baynes, publicadas originalmente com os livros - como referência a povos árabes. Considerando detalhes como linguagem, arquitetura, vestimentas, sistema de governo e mesmo nomes, não é disparate afirmar que a Calormânia tem muito da Turquia, ou, melhor seria dizer, do Império Otomano.

Ilustração de Pauline Baynes para O Cavalo e seu Menino

C. S. Lewis é um produto cultural de sua época. Nascido em fins da era vitoriana, ele cresceu numa Inglaterra imperialista; viveu duas guerras mundiais, tendo lutado na primeira. Considerando tudo isso, não é muita surpresa que, precisando de um grande vilão e de um contraste para enaltecer as qualidades tipicamentes inglesas que ele enxergava em seus protagonistas, tenha escolhido criar para essa comparação uma nação Oriental - ou melhor, um país imaginário inspirado na noção européia do que era ser oriental.

Em Orientalismo - a Invenção do Oriente pelo Ocidente (por sinal, recomendo muito a leitura dele para quem se interessa por crítica literária e História), o professor e estudioso de literatura Edward Said escreveu que nossa visão do Oriente é uma ficção construída por sociedades colonialistas, que utilizaram essa narrativa para justificar seu controle. Eles exageraram as diferenças entre Ocidente e Oriente de forma a se colocarem como salvaguarda da Civilização, tipificando os orientais simplesmente como ‘O Outro’. O outro é o bárbaro, o exótico, o comedor de criancinhas, o senhor de haréns, numa visão romantizada que iguala todas a pluralidade cultural fora do eixo europeu com algo que parece saído direto de As Mil e uma Noites, e que exacerba diferenças, justamente para fazer os ocidentais, com sua democracia e sua ética protestante, saírem por cima.

Foi com essa interpretação dos fatos que Lewis cresceu. Essa mitificação oriental só começou a ser questionada com o fim do colonialismo, no pós-guerra mundial. Assim, ao buscar o contraste perfeito para aquilo que Nárnia representa, não é uma surpresa que o Outro em sua obra se iguale ao mito de Oriente que existia à época - e que, verdade seja dita, ainda hoje identificamos com os povos árabes de uma maneira geral.

Dentro desse contexto, talvez fizesse mais sentido que os calormanos de Lewis lembrassem os indianos em vez dos turcos, já que a Índia era colônia inglesa e uma fonte constante para os vitorianos de exotismo (e escândalo - lembrem-se que eles escreveram a Kama Sutra). A verdade, porém, é que a Turquia estava muito mais próxima e se encaixava melhor no papel de vilã.

Essa posição de país ‘geograficamente europeu, mas não europeu o suficiente’ é muito parecida com a dos russos, que, vejam só, eram inimigos mortais dos turcos quando eles ainda eram o Império Otomano. E foi por essa razão que a Turquia entrou na Primeira Guerra Mundial do lado das Potências Centrais: os franceses eram aliados da Rússia, e como ‘o inimigo do meu inimigo é meu amigo’, os turcos se alinharam com os alemães.

Para além de terem se aliado à Alemanha na Primeira Guerra, o Império Otomano também rendeu aos ingleses uma de suas batalhas mais custosas e traumáticas: a Campanha de Galípoli. Entre abril de 1915 e janeiro de 1916, tropas britânicas, francesas, australianas e neozelandesas tentaram invadir a Turquia e capturar o estreito de Dardanelos, essencial para estabelecer ligação com os russos. Os Aliados terminaram derrotados e tiveram mais de trezentas mil baixas - somando às baixas dos otomanos, entre mortos, feridos, desaparecidos e capturados, foram mais de meio milhão de soldados. A operação foi proposta e liderada pelos britânicos, que a sentiram como uma derrota pessoal. Lewis estava no treinamento de oficial à época, e não é difícil imaginar o impacto que Galípoli (e, depois, Somme) teve sobre o espírito do autor.

Nesse mesmo período, aproveitando a deixa da Guerra, o governo do Império Otomano exterminou sistematicamente os armênios em seu território. Recrutaram à força a população masculina jovem, enviando-a para morrer nos fronts; muitos armênios foram executados, ou morreram em marchas forçadas através do deserto, privados de comida e água, submetidos a roubos e estupros periódicos. O Genocídio Armênio - termo até hoje contestado pelo governo turco - teria matado mais de um milhão de pessoas, bem antes de Hitler pensar na Solução Final, e já era fato público conhecido em 1915.

Fazendo essa costura de fatos históricos, a escolha de Lewis para vilão não é tão surpreendente; entre alemães e turcos, os turcos eram pelo menos visualmente bem mais diferentes dos ingleses e com uma cultura muito mais exótica. Essa generalização do ‘oriental’ - porque, vamos lembrar, os calormanos estão como representação de tudo o que é o Outro, o não-ocidental, o bárbaro -, e a tendência a ligar características raciais ao caráter de um povo, que trazem as acusações de racismo para a leitura de Nárnia.

Pessoalmente, acho que, se era para usar clichês e alegorias, fazia mais sentido colocar os inimigos de Nárnia como um povo teutônico com tendências fascistas - especialmente a se considerar que os ingleses foram à guerra duas vezes contra os alemães. Mas creio que Lewis não achava que colocar os loiros narnianos ao lado de loiros calormanos daria o contraste visual que ele precisava para se fazer entender em suas metáforas.

Leitores da época em que o livro foi lançado provavelmente tinham consciência de todos esses fatos. Contudo, o leitor moderno de Lewis - a não ser que seja um pesquisador ou um cara muito curioso - não vai se preocupar em ler uma série de livros infantis acompanhado de uma biografia do autor. Talvez ele até reconheça as referências turcas - que não se restringem ao fato de que a palavra ‘Aslam’ é a palavra turca para ‘Leão’; nem à famosa sobremesa que fez Edmund cair em tentação em O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa.

De toda forma, a biografia só vai lhe dizer que ele lutou na Primeira Guerra nas trincheiras da França. Então, o leitor moderno vai dizer com seus botões ‘Lewis era racista’ e as coisas ficarão por aí mesmo. E isso é um problema do livro, porque não se pode exigir que o leitor moderno faça um curso sobre as campanhas inglesas na Primeira Guerra e o fim do Império Otomano para ser capaz de interpretar as intenções do autor. Aliás, supostas intenções, afinal, minha interpretação histórica não deixa de ser conjectura.

De toda forma, ainda que você estabeleça o paralelo “calormanos → turcos otomanos soldados da primeira guerra mundial inimigos dos ingleses”, não há como se negar que Lewis escreveu seus calormanos como um apanhado geral do que se imaginava ser o ‘homem oriental’. Mais que isso, eles são uma representação de tudo o que é o Outro, o não-ocidental, o bárbaro. E isso de fato permite inferir a existência de preconceito na forma como os calormanos são apresentados.

Não posso dizer com absoluta certeza que, ao final da contas, Lewis não fosse, de fato, racista. A comparação dos loiros narnianos com os escuros calormanos sempre vai me deixar com um pé atrás. Há muito material histórico que me faz refletir e refletir que, considerando o que ele conhecia e aquilo que ele viveu, há uma explicação menos óbvia que “Lewis achava que todos os árabes eram adoradores de demônios”.

Por outro lado, se você precisa de uma lista de dados externos à narrativa para compreender o contexto dela, no mínimo isso significa que a história é datada. Em se tratando de um livro infantil, cujo público leitor é não apenas impressionável, mas está num período de formação moral, a possibilidade de estar ensinando preconceitos não é um pecadilho à toa. Não significa que As Crônicas de Nárnia devam ser censuradas e jogadas à fogueira, mas que, se o leitor moderno estiver lendo com suas crianças, pode usar todo essa confusão dos calormanos como gancho para uma conversa sobre diferenças e tolerância. Considerando que o próprio Lewis nos dá exemplos de calormanos que não são vilões - Aravis, em O Cavalo e seu Menino; Emeth, em A Última Batalha - há abertura para ensinar que não se deve julgar pela aparência.

Continuando... A segunda grande polêmica envolvendo as crônicas é a questão da representação feminina, especificamente no papel dado a Susan Pevensie.

Ilustração de Pauline Baynes para O Cavalo e seu Menino

Ao final de A Última Batalha todos os antigos reis e rainhas de Nárnia - com exceção de Susan - aparecem de volta na ‘Verdadeira Nárnia’. Tirian já os tinha encontrado durante seu transe, quando capturado, e agora eles estão todos ali, a despeito de, no passado, Aslam dizer que alguns deles não poderiam retornar: Lucy, Peter e Edmund; Polly e Digory; Jill e Eustace. Para além disso, de longe, os irmãos Pevensie também enxergam que seus pais estão presentes naquele novo mundo.

E aí vem a explicação: todos eles estão mortos. A última coisa de que se lembram é do barulho e do impacto de um trem; um trem em que parte dos personagens estava, enquanto outra parte esperava na estação (e no qual os pais Pevensie também se encontravam). E, tendo sido verdadeiros amigos de Nárnia - evangelistas da Palavra de Aslam - ganharam lugar no Paraíso.

Susan não estava com eles, contudo. Susan não acreditava mais em Nárnia…

... e cada vez que se tenta conversar com ela sobre Nárnia ou fazer qualquer coisa que se refira a Nárnia, ela diz: Mas que memória extraordinária vocês têm! Continuam no mundo da fantasia, pensando nessas brincadeiras tolas que a gente fazia quando era criança.

...e mais que isso, Susan ousou querer ser adulta.

Essa Susana! Agora só pensa em lingeries, maquilagens e compromissos sociais. Aliás, ela sempre foi louquinha para ser gente grande.

Vamos começar pelo começo... Quando Susan é apresentada em O Leão, a Feiticeira e o Guarda Roupa, Lewis dá a ela um óbvio papel materno na dinâmica dos quatro irmãos: sendo a irmã mais velha e na ausência dos pais, é ela que tem de se preocupar com questões práticas, que está sempre chamando os outros ao bom senso, a mais cautelosa e previdente. Seu epíteto como rainha é ‘a gentil’ e ela demonstra constantemente essa gentileza; o que não significa que ela não seja capaz de se proteger e lutar se necessário, sendo uma exímia arqueira.

Em O Cavalo e seu Menino, temos um interlúdio de seus tempos como Rainha, antes de retornar para seu mundo original. Susan está sendo cortejada pelo filho do Tisroc, governante da Calormânia e, embora tenha inicialmente se deixado levar pela poesia e aparente cortesia do príncipe Rabadash - além das vantagens políticas da união, que traria mais segurança para Nárnia -, ela não demora a entender quem ele é realmente. Susan não tem interesse em se deixar controlar por um marido tirânico e não se acovarda a seguir com um engenhoso plano para fugir de volta para Nárnia. Para além disso, ela continua a exercer um papel materno, cercando de cuidados o príncipe Corin da Arquelândia, jovem que é parte da comitiva de narnianos e órfão de mãe.

É em Príncipe Caspian que as coisas começam a se complicar. Susan é a mais relutante dos irmãos a aceitar que estão de volta a Nárnia; durante a jornada até o acampamento dos narnianos que esperam para combater os telmarinos ela parece que só faz resmungar, persistentemente ranzinza. Quem tiver curiosidade de observar os verbos para descrever suas falas vai perceber que sua participação na história é de infinitas reclamações. Ela também é a última a ser capaz de enxergar Aslam e isso é um bom demonstrativo de como anda sua fé.

– Lúcia! – chamou Susana, baixinho.

– Que é?

– Agora estou vendo Aslam. Desculpe-me.

– Não tem importância.

– Mas sou muito pior do que você pensa. Acreditei que era ele... acreditei ontem mesmo... quando ele não queria que fôssemos pelo pinhal. E acreditei também hoje, quando você nos acordou. Isto é... no fundo acreditei... Ou podia ter acreditado, se quisesse... Mas estava com tanta pressa de sair da floresta... e... não sei como vou explicar. O que vou dizer a ele agora?

– Talvez não precise dizer mais nada.

[...]

– Psiu! – fizeram os outros quatro, porque Aslam parara e, tendo-se voltado, olhava para eles com um aspecto tão majestoso que todos ficaram contentes, tão contentes quanto é possível a pessoas que sentem medo, e tão cheios de medo quanto é possível a pessoas que se sentem contentes. Os rapazes avançaram. Lúcia afastou-se para lhes dar passagem. Susana e o anão recuaram.

– Aslam! – exclamou Pedro, pondo um joelho em terra e levantando a pesada pata do Leão até tocar com ela no rosto. – Estou tão contente... e tão triste! Desde que partimos que os tenho trazido por caminho errado, e ontem foi pior do que nunca.

– Meu filho! – disse Aslam.

Depois voltou-se para Edmundo e deu-lhe as boas-vindas:

– Muito bem! – foram as suas palavras. – Depois de um silêncio terrível, disse com voz grave: – Susana! – Susana não respondeu e pareceu aos outros que estava chorando. – Você deixou que o medo a dominasse. Venha, deixe que sopre sobre você. Esqueça seus receios. Está melhor agora?

– Um pouco, Aslam – disse Susana.

Quando Lucy encontra um feitiço para torná-la ‘bela para além dos padrões mortais’, em A Viagem do Peregrino da Alvorada, ela imagina as comparações com a irmã caso fosse a própria Lucy a mais bela na família. Não se sabe se é a influência do livro de encantamentos - ele mesmo capaz de enfeitiçar seu leitor -, mas o que Lucy revela nessa cena é uma tensão inesperada entre irmãs, ciúme ou inveja da maturidade e, claro, da beleza de Susan.

E aí temos a ausência de Susan em A Última Batalha. Partindo do princípio que ela não estava com os irmãos ou com os pais, e que ela não aparece em Nárnia (nem mesmo para ser julgada), fica implícito que ela não morreu no acidente - o que foi confirmado pelo próprio Lewis no livro Letters for Children, uma coletânea de cartas que ele escreveu em resposta a correspondências enviadas por crianças suas leitoras.

Vou ser sincera, a ausência de Susan no final ‘feliz’ das crônicas me incomoda bastante, mas não pelas razões de “Susan foi excluída por usar maquiagem”, mas pela insensibilidade dos irmãos, que por nem um momento lamentam o fato de terem perdido Susan, ou o que vai acontecer à moça, que se viu repentinamente sozinha no mundo. Empatia mandou lembranças…

Por mais que Susan não seja mais uma ‘amiga de Nárnia’ - uma expressão, aliás, que revela mais que uma simples falta de fé nas fantasias de infância -, o que temos aqui é uma jovem mulher (pelas minhas contas ela devia ter uns 21 anos à época) que perdeu de uma única vez a família inteira, pais e irmãos. Como, então, acreditar nesse final feliz quando temos nas entrelinhas o luto de Susan?

O fato de Susan negar Nárnia, negar o que ela enxerga como fantasias de infância, implica - dentro da alegoria religiosa estabelecida por Lewis - numa negação da fé. E muita gente iguala a perda desse compromisso de crença com algo mais prosaico: a consciência de sexualidade.

Susan descobriu ‘lingeries, maquiagem e compromissos sociais’. Trocando em miúdos: Susan descobriu o sexo e, por isso, caiu da graça. Comparada a Lucy e Jill, que não parecem muito preocupadas em assumir papéis femininos convencionais, ou mesmo em crescer, isso significaria a perda de sua inocência. Nesse contexto, não seria de se surpreender que seja a mulher a ‘perdida’ deste enredo: Lewis usa constantemente a expressão 'filhos de Adão e filhas de Eva' e sim, Susan é uma perfeita representação de Eva privada do Paraíso. Ela se deixou levar pela tentação. E, vez que já começamos a falar de sexo, vamos expandir essas elucubrações e pensar em Peter, mais velho que Susan, provavelmente morando sozinho como estudante universitário (porque a última notícia que tivemos dele antes de A Última Batalha é que ele estava estudando com o professor Digory para prestar os exames admissionais em Oxford). E aí, pensemos se Peter não amadureceu sexualmente também. No entanto, ele foi capaz de entrar no país de Aslam.

Dois pesos e duas medidas? Essa correlação entre sexualidade feminina e o que poderíamos chamar de ‘queda da graça’ sempre foi um dos argumentos usados para controlar as mulheres. "Temos de defender a castidade de nossas filhas e esposas, então vamos mantê-las trancadas em casa". E, se elas não sabem o seu lugar, então são "libertinas, desregradas, rameiras". E, bem, era exatamente essa a mentalidade da época em que Lewis escreveu seus livros. Não é neurose fazer esse tipo de leitura, especialmente quando você considera o machismo de hoje e de quando as crônicas foram escritas.

Ao mesmo tempo… bem, ao mesmo tempo, toda essa questão envolvendo Susan talvez seja um salto muito grande - e vai depender muito da intenção e interpretação do leitor. Porque é simplificar demais dizer que Susan foi barrada no paraíso porque começou a usar batom. É perfeitamente possível alegar aqui que sexo não tem nada a ver com a perda da espiritualidade de Susan, sendo apenas um reflexo da mudança de prioridades da personagem.

Já observei anteriormente que não se deveria depender de fatores externos para interpretação de uma narrativa. Mas, já que temos acesso a esses fatores, vamos colocá-los aqui e ver se isso altera nossa percepção. Duas cartas que Lewis escreveu para crianças leitoras das crônicas me chamam a atenção e dizem muito a respeito de toda essa polêmica. A primeira foi escrita em janeiro de 1957, e ele diz:

The books don't tell us what happened to Susan. She is left alive in this world at the end, having by then turned into a rather silly, conceited young woman. But there is plenty of time for her to mend, and perhaps she will get to Aslan's country in the end--in her own way. I think that whatever she had seen in Narnia she could (if she was the sort that wanted to) persuade herself, as she grew up, that it was "all nonsense".

E em outra correspondência, essa de fevereiro de 1960, esclarece:

I could not write that story myself. Not that I have no hope of Susan’s ever getting to Aslan’s country , but because I have a feeling that the story of her journey would be longer and more like a grown-up novel than I wanted to write. But I may be mistaken. Why not try it yourself?

Deixando de lado o fato de que Lewis basicamente convidou seus leitores a escrever fanfic, o que precisamos entender é que, ainda que nosso último vislumbre de Susan seja o de uma jovem ‘tola e presunçosa’, ela não parou no tempo. Ela não morreu no acidente, como os irmãos, ficando suspensa no tempo, imutável; mas continuou a viver, continuou sua jornada e, possivelmente, encontrou seu próprio caminho para ‘o país de Aslam’.

Palavra chave dessa oração: Susan viveu.

Sim, Susan deixou de acreditar em Nárnia e em Aslam. Mas aí eu me remeto à dedicatória que Lewis escreveu em O Leão, a Feiticeira e o Guarda Roupa e uma citação muito lembrada como epígrafe por aí: “um dia você terá idade suficiente para começar a ler contos de fadas outra vez”. Na minha interpretação, isso significa que você amadureceu o suficiente para não se importar com o que o mundo julga que você deve se importar, em ser prático e pragmático; que é capaz de se admirar com o mundo que o cerca e de acreditar na mensagem que as histórias - mesmo as mais incríveis e fantasiosas, mesmo os contos de fadas - carregam em sua essência.

O próprio Lewis falou sobre isso numa palestra que deu em 1952, posteriormente publicada como o ensaio Três Maneiras de Escrever para Crianças.

Preocupar-se em ser adulto ou não, admirar o adulto por ser adulto, corar de vergonha diante da insinuação de que se é infantil: esses são sinais característicos da infância e da adolescência. E, na infância e na adolescência, quando moderados, são sintomas saudáveis. É natural que as coisas novas queiram crescer. Porém, quando se mantém na meia-idade ou mesmo na juventude, essa preocupação em "ser adulto" é um sinal inequívoco de desenvolvimento reprimido. Quando tinha dez anos, eu lia contos de fadas escondido e ficava envergonhado quando me pilhavam. Hoje em dia, com cinquenta anos, leio - os abertamente. Quando me tornei um homem, descartei as coisas infantis, incluindo o medo da infantilidade e o desejo de ser visto como muito maduro.

O problema de Susan não é simplesmente crescer, tornar-se mulher - do contrário, Polly não poderia ter aparecido no país de Aslam junto com Digory. Não é nem mesmo uma questão de sexo, pois Jill não acusa Susan de só pensar em garotos. Na frase original em inglês, os interesses de Susan são ‘nylons and lipstick and invitations’; em suma, frivolidades, aparência. Vaidade. Susan deseja ser vista como uma adulta e por isso se distancia de toda insinuação de infantilidade, incluindo os contos de fadas, as brincadeiras, as histórias de Nárnia. E, ao deixar de lado essas histórias, ela se distancia também das verdades espirituais que nossa jornada pelas crônicas nos mostrou.

Isso não significa que Aslam e Nárnia estejam permanentemente perdidos para ela, mas que, como Lewis disse em suas cartas, a jornada dela é diferente.

É bom lembrar que Lewis nos deu em As Crônicas de Nárnia uma trupe de heroínas destemidas, dinâmicas, inspiradoras, fascinantes. Elas não estão em cena simplesmente para fazer par com o mocinho; são narradoras de suas histórias - como Jill - e protagonistas também.

Para além disso, embora tenha perdido suas referências femininas muito cedo, com a morte da mãe, Lewis se cercou de mulheres fortes quando adulto. Seus dois principais relacionamentos foram com mulheres separadas, que enfrentaram preconceitos sociais para se livrarem de casamentos abusivos: Jane Moore, bem mais velha a experiente; e Joy Davidman, ela mesma uma escritora e intelectual. Ele mantinha correspondência com outras autoras, estudiosas, poetisas. Olhando a biografia de Lewis, e a forma como ele mesmo nunca se importou com convenções e preconceitos, não consigo defender a ideia de que ele fosse machista.

Nessas horas, sempre me lembro da lição de Eco sobre os limites da interpretação do texto. Existe a intenção do autor ao escrever. Existem as experiências que o leitor traz consigo e colorem sua interpretação da leitura. E existem os limites impostos pelo próprio texto - porque você nunca vai poder fazer laranjas significar parafusos. Pensando nisso, o que posso dizer é que é válida a leitura que faz crítica ao final de Susan Pevensie - o texto permite essa interpretação. Mas essa não é uma explicação absoluta; há outras possibilidades de interpretação.

Quando li As Crônicas de Nárnia pela primeira vez, nada do que escrevi aqui hoje me passou pela cabeça. Eu não estava preocupada com reflexos da participação de Lewis na guerra; nem com os relacionamentos afetivos que ele teve, nem mesmo com as alegorias religiosas. Eu estava lendo pela fantasia, pela possibilidade de outros mundos, pela jornada. Essa é uma leitura possível, e que eu soube aproveitar muito bem à época.

Ao longo dos anos, tive outras opiniões a colorir a forma como enxergava a obra e, sim, aceitei sem questionamentos a ideia de Lewis ser racista, machista, e o raio mais que o parta, porque o texto dava espaço a essa crítica; porque alguns dos meus autores favoritos faziam essa crítica e eu aceitei sua influência.

Quando escolhi o tema para o especial desse ano, isso significou, para além da releitura da obra original, uma longa pesquisa que incluía a biografia de Lewis - e cada novo ponto de referência que ia encontrando me fazia enxergar o conjunto por um novo ângulo. Comecei a escrever com muitas opiniões pré-concebidas e fui mudando à medida que desenterrava mais informações. Mas, independente das minhas conclusões pessoais, acho este debate todo extremamente válido, porque significa que estamos fazendo leituras críticas, questionando problemas de representação de minorias, papéis de gênero, e o que essas histórias são capazes de nos ensinar.

Talvez pareça meio absurdo a uns que se faça tanto barulho em torno de histórias infantis. Duas justificativas: primeiro, histórias infantis são coisa muito séria, afinal, somos uma espécie que aprende através de histórias. Começamos a explicar o mundo ao nosso redor por mitos; inventamos deuses e heróis, criamos nossa própria criação. Segundo, o fato de ser uma história infantil não significa que um adulto não seja capaz de usufruir dela. Como muito bem disse Lewis, um dia teremos idade suficiente para voltar a apreciar contos de fadas. As boas histórias permanecem, independente de estarem na prateleira infantil. É só você se permitir encantar.

E então? Está pronto para entrar no guarda-roupa e viver uma aventura?


Por Nárnia!

Parte I - Um Mago Professor
Parte II - Através do Guarda-Roupa, de Desertos de Neve e Areia
Parte III - Reis e Rainhas de Nárnia
Parte IV - Começo e Fim
Parte V - Problemático e Inspirador


A Coruja

p.s.: só lembrando que essa semana termina o sorteio de aniversário do blog, valendo um kit com três bloquinhos artesanais, inspirados em personagens de Nárnia. Para participar, deem uma olhada neste post.


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8 comentários:

  1. Lu, li terminei de ler "As crônicas de Nárnia" este ano, fiz meio que um projeto com um amigo e lemos um livro por mês. O preconceito e o final de Susana me deixam danada, confesso, por mais que entenda o contexto em que ele foi escrito.
    Quanto ao quase convite de escrever fanfic sobre o final da Susana, tem uma no fanfiction.net sobre isso que eu gosto bastante, mas realmente puxa para o lado romântico e mistura acontecimentos dos livros com os filmes.

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    1. Eu entendo seu ponto, Monique, como disse no ensaio, são leituras possíveis, o texto é aberto o suficiente para esse tipo de interpretação. Acho que muito do que me incomoda no final da Susan, para além da insensibilidade dos irmãos, é a falta de uma resolução para o arco narrativo dela. Fica em aberto o destino que ela teve e você só consegue pensar na Susan, completamente sozinha, sem nenhum apoio emocional, tendo de lidar com a perda da família, enquanto essa família vive 'férias eternas'. E aí, no impulso, é difícil não pensar o pior da situação dela, especialmente porque é uma personagem mulher e quantas outras personagens não vimos na mesma situação, jogadas na geladeira, culpadas apenas de serem... mulheres? Acho que a gente julga, em parte, porque já chega na defensiva. Enfim, é algo a se pensar...

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  2. Maravilhosa sequência de textos sobre Nárnia.

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  3. Tenho meus 23 anos e só agora li As Crônicas de Nárnia é devo dizer que foi muito bom ler nesse momento, porque tem certos detalhes que a gente aprecia melhor quando temos mais maturidade em leitura. E ao mesmo tempo é muito bom se conectar com esse lado mais leve, simples e singelo que um livro dito infantil-juvenil tem para nos apresentar. Durante a leitura, eu me senti incomodada em alguns poucos momentos, e todos eles foram sobre esses pontos que você levantou no texto, mas ficava pensando se eu não estava exagerando ou criando caso, afinal de contas eu ficava me lembrando da época em que os livros foram publicados, daí me deparei com seu texto falando precisamente desses pontos e de maneira tão primorosa. Não sei se vai ver essa mensagem, mas amei o texto e as referências que você trouxe pra embasar suas reflexões. Mais que isso, foi muito bom ter esse contato com uma outra experiência de leitura. É sempre muito engrandecedor. Parabéns e obrigada pelo texto!

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    1. Oi, Milena! Recebo todos os comentários feitos através do próprio blogger por email, então vejo tudo ;) Enfim, que bom que gostou da leitura! Concordo com o que o Lewis fala num dos ensaios dele, de que bons livros continuam bons quer você leia aos sete ou aos setenta anos. Com a idade, passamos a ler de maneira mais crítica (razão de levantarmos os pontos problemáticos, como você muito bem pontuou), mas não deixamos de nos encantar quando o encanto está lá para ser jogado em nós. Talvez por isso tenho feito cada vez mais releituras - ainda que por vezes eu tenha medo de estragar uma recordação de infância dessa maneira. Enfim, muito obrigada pelo comentário (adoro eles grandes assim!) e fique à vontade para escrever sempre! Um abraço!

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  4. Caramba... Sem condições, eu adorei o texto. Eu vou discutir a série com uma amiga minha, e parece que alguém me fez o belo favor de catar todos os meus pensamentos desordenados e juntar tudo num artigo coeso, coerente e completo.
    Baita ajuda!

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    1. Fico feliz! Espero que vocês tenham um ótimo debate - adoro a possibilidade de enxergar novos ângulos que uma leitura em conjunto oferece.

      O Lewis é um cara interessante. Nos últimos três anos, desde que escrevi esse especial, li vários dos volumes de não ficção dele e talvez acrescentasse algumas coisas sobre as visões de religião dele. Enfim, obrigada pelo comentário! Um abraço!

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