5 de junho de 2017

Só os Animais Salvam: "Talvez apenas os animais possam nos dizer o que é ser Humano"

Então ficou claro para mim e Mex e Gallos o que havíamos feito. Tínhamos jogado fora nossa liberdade. Havíamos nos tornado os anciãos da colônia, de quem de repente era esperado o comportamento de Patriarcas de merda. Essa molecada vinha o tempo inteiro até nós para perguntar muito solenemente sobre a procura do sentido. Que sentido? Tudo o que um dia prometemos fora uma busca, uma jornada, uma viagem, estrada. Como acontecera aquilo, como era possível termos dado origem a essa estranha juventude beata que achava que a vida devia ter sentido?
Esse livro foi um daqueles casos de amor à primeira vista: olhei para a capa, fiquei apaixonada e só depois li a sinopse, quando então tive a certeza de que queria tê-lo na minha estante. Encomendei um volume, ainda na pré-venda, para dar de presente para uma amiga querida que adora animais e deixei para pedir o meu depois de terminar a pilha de processos que estava precisando analisar no escritório. Hilariantemente, no mesmo dia em que o livro que eu tinha encomendado para dar de presente chegou aqui em casa, outro pacote, com o mesmo livro, chegou de surpresa - ganhei de presente da Raquel (muito obrigada de novo!) o livro que ia dar de presente para Vivi. Comecei a ler no mesmo dia, porque não consegui resistir.

Só os Animais Salvam tem uma premissa que, à primeira vista, pode parecer um pouco mórbida: é um livro de contos narrado por animais que foram vítimas de algum dos inúmeros conflitos humanos; desde o processo de colonização da Austrália até as mais recentes guerras no Oriente Médio. Contudo, as histórias aqui apresentadas são muito sensíveis, inteligentes, infundidas de um forte senso de empatia e mesmo compaixão. Há um elemento de humor na própria escolha de colocar animais - e animais tão diferentes, de camelos a tartarugas, golfinhos e mexilhões, até gatos e cães mais comumente próximos aos seres humanos. Por fim, todas as histórias se entrelaçam com figuras literárias importantes, que ou são personagens diretas ou referência para a criação dos contos.

Gosto bastante de contos pela forma como eles conseguem se conter; histórias curtas perfeitamente redondas, acabadas. Por outro lado, na minha experiência, livros de contos costumam ser um pouco irregulares, com algumas histórias excelentes e outras medianas. Só os Animais Salvam é bem uniforme nessa questão; com exceção de uma única história, cujo contexto eu não consegui acompanhar (e creio que o problema tenha sido minha falta de conhecimento sobre a história australiana), todas as narrativas aqui apresentadas me tocaram e encantaram de alguma forma.

É um livro diferente, que foge ao padrão do que normalmente vemos nas estantes das livrarias. Entre suas inúmeras peculiaridades, contudo, o que mais me chamou a atenção foi a diversidade narrativa, a forma como a autora experimentou diferentes vozes, diferentes maneiras de contar uma história. O conto do mexilhão, que segue rumo a Pearl Harbor numa viagem que ecoa Kerouac; a história da tartaruga que começou como companheira de um eremita, imiscuiu-se na casa dos Tolstói, passou pela mão de Virginia Woolf, George Orwell e Tom Stoppard antes de entrar no programa espacial soviético em plena Guerra Fria; os ursos de contos de fadas no zoológico em Sarajevo, durante o cerco à cidade e o golfinho que escreve uma carta a Sylvia Plath, entre inúmeros outros, são personagens que nos permitem explorar o caráter humano naquilo que ele tem de melhor e, claro, de pior.


Os animais que narram as histórias aqui apresentadas guardam uma quieta dignidade e um respeito pelos seres humanos que os cercam que, francamente, nem sempre é merecido. Mas, em sua simples honestidade, eles nos oferecem uma compreensão interessante do caráter humano: a sinopse em inglês dele começa dizendo que “talvez apenas os animais possam nos dizer o que é ser humano” e eu concordo com essa afirmação no contexto do livro. O título original - Only the Animals - concentra-se nessa questão, mas receio que a tradução em português ficaria algo incompleta sem o ‘salvam’ que colocaram por aqui.

De resto, a Darkside fez um magnífico trabalho, como de hábito. Olhei as capas de outros países e nenhuma é tão bonita quando a brasileira. O projeto gráfico é lindo, daqueles que dá gosto de ter na estante. Agradeço muito o presente e tenho certeza que ainda vou presentear mais amigos queridos com ele. Uma leitura rápida, diferente, que convida à introspecção mas também diverte. Uma ótima pedida para os dias de chuva constante que têm feito por aqui...

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica

Título: Só os Animais Salvam
Autor: Ceridwen Dovey
Tradução: Leandro Durazzo
Editora: Darkside
Ano: 2017

Onde Comprar

Amazon || Cultura || Saraiva


A Coruja


____________________________________

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sobre

Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.

Cadastre seu email e receba a newsletter do blog

powered by TinyLetter

facebook

Arquivo do blog