7 de novembro de 2015

Para ler: Villette

"Eu sofria de novo a dor que corroía a alma, longamente, por causa de uma grande expectativa. Essa cruel agonia da ruptura final; essa angústia muda e mortal, que, de uma só vez, arranca a esperança e planta a dúvida, abala a vida, enquanto a mão que comete a violência não pode ser aplacada por carícias, pois a ausência interpõe sua barreira."
Levei quase dois meses para conseguir vencer as quase seiscentas páginas de Villette. Parte da culpa é minha: comecei o livro justo na semana da mudança de apartamento e para além do caos natural que se segue mesmo após todas as caixas terem sido desocupadas – você sempre acha alguma coisa nova para arrumar e trocar de lugar – teve férias, viagem, aniversários e confraternizações. Em suma, toda vez que eu me sentava e achava que ia conseguir avançar mais que uma ou duas páginas de vez, alguém me chamava para ajudar em alguma coisa.

Contudo, não foi só minha maneira truncada de ler o livro que atrapalhou. Villette é um livro complexo, e cheio de questões de levantam interesse, mas ao longo de pouco mais da metade do volume, quase nada parece acontecer: a narrativa de Lucy Snowe é uma longa procissão de acontecimentos que não parecem desembocar em nada. E assim é que passei uns quarenta dias para ler quatrocentas páginas, e quando a coisa afinal engatilhou, foram duas tardes para ler as últimas duzentas páginas.

A história segue Lucy, uma jovem inglesa típica, que após um longo histórico de perdas e tristezas, atravessa o canal para Labassecour – reino ficcional inspirado na Bélgica – onde acaba arranjando emprego como professora de inglês num pensionato para garotas.

Lucy é muito diferente de Jane Eyre, a personagem mais emblemática pela qual Charlotte Brontë ficou famosa. Em ambos os livros, são as protagonistas que narram a história, mas, enquanto Jane convida o leitor para perto, faz dele seu cúmplice, Lucy é oblíqua, desconfiada e parece estar sempre fugindo de fazer qualquer afirmação mais incisiva, diminuindo os acontecimentos de tal maneira que nos tornamos confusos sobre seus verdadeiros sentimentos.

É isso que acontece em seu relacionamento com o bom Doutor John Bretton. Ela dá a atender num suspiro que as atenções do médico tinham-na levado a devaneios românticos, e no parágrafo seguinte apaga todos os castelos no ar com uma mão descuidada, afirmando que tudo não passa de afeição inocente, fraternal. De princípio, afirma que no futuro, John a faria sofrer, e páginas adiante, é ela quem faz a ponte entre ele e a verdadeira musa do rapaz, tudo com o maior prazer e boa vontade em ver duas pessoas tão boas que se merecem, assim como todas as bênçãos com que são ambos cumulados.

Jane Eyre é um ser passional, que não esconde sua intensidade, enquanto Lucy Snowe se acomoda em sua existência e tenta reprimir a todo custo seus impulsos. E ela o consegue... exceto em alguns momentos, especialmente quando provocada pelo professor Monsieur Paul Emanuel.

Todas as melhores cenas do livro, na minha opinião, são as que apresentam Monsieur Paul – ou pelo menos tocam tangencialmente em sua existência. Ele é quase um alívio cômico em muitos pontos – por motivos que não sei explicar, a imagem dele na minha cabeça ficou igual ao do Hercule Poirot de David Suchet (até porque os dois personagens são belgas...) – mas, ao mesmo tempo, ele é um verdadeiro herói romântico: generoso e gentil, irascível e ciumento em alguns momentos, mas pronto a reconhecer suas falhas e fazer as devidas contrições, trabalhando nos bastidores para aplainar o caminho de Lucy.

Lucy me lembra muito a protagonista de Mansfield Park, Fanny Price. Ambas são, ao longo de boa parte de suas respectivas histórias, mais observadoras do mundo ao redor delas que agentes ativas de seus destinos. Mas quando afinal decidem tomar as rédeas de suas vidas, fazem-no de maneira espetacular. Lucy desafiando Madame Beck é Fanny dizendo não ao tio: elas deixam de serem peões para se tornarem jogadoras.

Como disse antes, não parece existir realmente um plot a seguir (e a ambiguidade do final quase me fez tacar o livro na parede, porque eu não queria acreditar no que era deixado implícito), mas Villette compensa muito pelo estudo psicológico feito de Lucy.

Charlotte Brontë explora bastante no romance questões de gênero, em especial os papéis impostos pela sociedade a cada sexo e também a independência feminina. Lucy não é uma mocinha protegida, tremendo diante das realidades do mundo, dependente do herói: por mais que se acomode em certos aspectos, quando é forçada pelas circunstâncias ela é capaz de tomar corajosas atitudes que rompem com o padrão da época – vide sua decisão de deixar a Inglaterra e seguir para Villette sem qualquer plano definido além de ‘procurar trabalho’ quando chegar lá. Ela é levada a essas decisões pelo desespero (ainda que tente ocultar esse sentimento), mas isso não diminui a importância de uma heroína com vontade própria e disposta a fazer o que for necessário para garantir seu sustento.

Há também o conflito cultural – Lucy não sabe francês quando chega a Villette e vai aprendendo aos poucos a linguagem. Suas origens, sua religião (ela é protestante, enquanto todos ao seu redor são católicos) e sua dificuldade com a língua forçam-na a um isolamento que a leva a determinada altura da história a um esgotamento nervoso.

O mais interessante do livro, claro, é a teoria de que mais que um romance, Villette é uma autobiografia. Charlotte foi uma criatura extraordinariamente sofrida e ela sabe muito bem emprestar esse sofrimento à personagem. Por mais que Lucy tente se reprimir, é impossível não perceber nas entrelinhas o quanto ela está cansada e esmagada por sua situação, pelas cobranças sobre seus ombros, pelas pequenas decepções que se sucedem sem parar.

Não é um livro fácil. São muitas as nuances e reflexões colocadas ao longo da história. Mas creio que valha à pena se aventurar pelos jardins e ruas de Villette, acompanhando Lucy em suas tentativas de encontrar seu lugar no mundo.

Nota: Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica

Título: Villette
Autor: Charlotte Brontë
Tradução: Fernanda Martins e Anaximandro Amorim
Ilustrações: Luiz Carlos C. Pereira
Editora: Pedrazul
Ano: 2014
Número de páginas: 598

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