30 de setembro de 2015

Quem Conta um Conto (Setembro): O Conto da Lu || Liberdade


7.

Seus joelhos bateram com força na terra enquanto o homem tombava às suas costas, morto de imediato.

Anya ainda segurava a carabina, uma expressão de firme determinação no rosto que aos poucos desaparecia por entre a torrente de lágrimas que rapidamente tomaram os olhos de Irina.

Ela mal se deu conta de quando os braços da outra moça a envolveram. O choro represado de anos agora saía livremente, junto com a sensação de terror dos últimos minutos. Ela perdeu a idéia do tempo, enquanto se deixava embalar no abraço de Anya, que a inclinava para frente e para trás como se ninasse uma criança.

Quando finalmente terminou, e ela tomou consciência de si mesma, Irina teve a impressão de que um grande peso saíra de seus ombros. Sentia-se a um tempo vazia e desconectada do resto do mundo - mas nesse sentimento havia também uma promessa de paz que ela não sentia há muito.

Ela respirou fundo, limpando o rosto.

- Temos de ir embora daqui.

4.

- Bom dia, senhora. Seu marido está?

Irina colocou uma mão sobre os olhos para protegê-los do sol, erguendo a cabeça para encarar o recém-chegado.

- Bom dia. - ela cumprimentou de volta - Está perdido?

Ele sorriu, balançando a cabeça.

- Não exatamente. Estava em meio a uma caçada, seguindo o rastro de uma bela corça… Tinha me decidido sentar para um descanso quando percebi seu chalé e decidi vir pedir abrigo. É solitário aqui em cima.

- Não para quem está acostumado.

Ele assentiu.

- Sou Vanya, senhora.

- Irina. - ela respondeu, logo acrescentando - Meu marido está cortando madeira na orla da floresta, mas logo estará de volta. Você gostaria de um pouco de água, caçador Vanya?

Observando-os entrar na casa com olhos negros brilhantes, dezenas de gralhas esperavam.

3.

Ela acordou com os gritos.

Tateando no escuro, encontrou a lamparina e com dedos endurecidos pelo frio, insistiu até conseguir reacender a chama. Jogando um xale sobre os ombros e enfiando os pés em suas botinas, Irina cambaleou para fora do quarto, avançando até a última porta do corredor.

Aquilo já quase se tornara rotina.

Sem as portas para abafar o barulho, o que parecia ser um grito se revelava como grunhidos de um animal acuado e ferido. Ela respirou fundo, sentando-se na beirada da cama e segurando com firmeza as mãos que já se debatiam contra ela.

Quando encontrara Anya pela primeira vez, a moça estava quase insensata pela febre. Irina não tinha idéia de como ela sobrevivera - era um longo caminho montanha acima até seu chalé e Anya não tinha como saber que encontraria abrigo em sua caminhada.

Considerando, porém, o estado em que Irina a descobrira, e o que conseguira entender da existência de sua hóspede, abrigo provavelmente não fora uma preocupação quando Anya decidira fugir do que quer que tivesse lhe deixado tão terríveis marcas no corpo e na mente.

- Shhh, Annushka, shhh…

Aos poucos a moça se acalmou em seus braços, seu corpo franzino tremendo. Gorgolejando algo incompreensível de quando em quando.

- Shhh, Annushka, shhh… vai ficar tudo bem.

Ainda que Anya pudesse entendê-la, dificilmente poderia concordar com o sentimento.

Como poderia, se Irina também não acreditava que algum dia poderia estar tudo bem?

2.

Ela nem sempre se chamara Irina. Não chegara a ter um nome antes, nunca tendo conhecido o conforto de braços maternos. Talvez por culpa de suas próprias memórias, não tivera pejo em batizar a desconhecida, escolhendo um nome para ela da mesma forma que escolhera para si.

Elas tinham muito em comum, ela e Anya. Ambas sem nome. Ambas fugidas. Ambas levando na carne a marca indelével da brutalidade humana.

Ambas tinham nascido escravas, com as marcas de seus donos em ferro e fogo em seus ombros.

6.

- Não pensei que teria assim tanta sorte quando segui o rastro da outra garota… A recompensa pelo retorno dela não é nada perto da que existe pela sua cabeça.

Irina continuou se debatendo, tentando escapar à firme pressão em seu pescoço, os lábios vermelhos de sangue pelo soco que o caçador lhe dera quando tentara mordê-lo, tonta pela dor e pelo medo.

- Você pegou seu antigo dono de jeito, não? Dizem que não sobrou muita coisa dele quando você terminou. Tiveram de fazer o velório com o caixão fechado. Mas não se preocupe, bruxa, não vou cometer o mesmo erro dele.

O desespero a impedia de se resignar, ainda que Irina não visse qualquer saída. Tantos anos atrás, quando fugira, ela contara com a surpresa de alguém que passara a vida inteira subestimando-a. É claro que um caçador de recompensas não faria o mesmo.

Uma revoada de gralhas seguiu-se ao estopim de um tiro.

1.

Empilhadas nas eiras e beiras do telhado, as gralhas investigavam o horizonte, conversando entre si com seus grasnados estridentes. Irina as observava sempre - elas eram suas companheiras e seus cães de guarda, o alerta para qualquer movimentação no horizonte, fossem tempestades ou visitas indesejadas.

Quando chegara, a casa estava abandonada, madeira podre e úmida - mas ela também era menos que um ser humano, mais selvagem que as gralhas que ali já faziam seus ninhos, e tudo de que precisava era um lugar para se esconder, fugir da própria luz do sol que, em seu medo, ela via como cúmplice de seus senhores.

Com o tempo, enquanto descobria a si mesma como algo mais que um objeto, e tentava conviver com o medo de, a qualquer instante, ser levada de volta, ela aprendeu a cuidar de seu pequeno abrigo. Aprendeu a recolher e cortar madeira e a manter o fogo aceso; a pescar, preparar armadilhas e escalpelar os pequenos animais que conseguia capturar.

Algumas vezes, explorando seu refúgio (e avaliando novos lugares pelos quais poderia, talvez, fugir) encontrara pastores, meninos de uma fazenda do outro lado da montanha. Sabia que estava distante do lugar de onde viera, mas ainda assim, a primeira vez em que um dos garotos a descobrira e cumprimentara, ela quase sentira seu coração explodir no peito.

Mas o que tinha a temer? A marca em seu ombro era escondida por suas roupas e ninguém ali a conhecia ou ouvira falar dela. Eles não sabiam o que ela fizera, não sabiam que ela era procurada.

Quase um ano inteiro se tinha passado e o inverno chegava. Talvez por isso ela tivesse feito o esforço necessário para molhar os lábios e com voz trêmula (uma voz que não usava a quase um ano), perguntar a ele se poderia ajudá-la a conseguir provisões para os longos meses de frio.

Tinha dinheiro - moedas que de nada lhe serviam, mas que trouxera consigo na fuga. Talvez planejasse inconscientemente usá-las para sua jornada, mas não… ela não estivera tão consciente, tão capaz de elaborar algum tipo de plano. Tudo acontecera rápido demais: agira por impulsividade, no calor da fúria e da vergonha, o sangue ainda escorrendo por suas pernas.

Mas agora ele tinha vindo a calhar. O dinheiro lhe comprou roupas adequadas para o inverno, comida e, principalmente, uma velha carabina e um bom estoque de balas, incluindo balas de festim para que pudesse treinar.

E a treinar ela se pôs. O peso da carabina lhe transmitia uma estranha segurança, a idéia de que não era tão vulnerável quanto outros acreditavam que fosse.

Anos se passaram até o dia em que encontraria Anya, ainda sem um nome, febril e quase morta, as costas lanhadas em sangue e os lábios inflamados.

Carregara-a até o chalé - ela era então pouco mais que pele e ossos - e com um desvelo que até então jamais demonstrara para com outro ser humano, limpou-a e a ajeitou em sua própria cama até que estivesse satisfeita com seu conforto.

Foi só quando teve de forçá-la a abrir a boca para tomar o chá que, esperançosamente, baicaria sua febre, que Irina percebeu o porquê da menina apenas grunhir insensatamente. A perversidade dos homens, aparentemente, não conhecia limites.

Eles tinha cortado sua língua.

8.

- Deixe-o. - Irina respondeu quando Anya inclinou a cabeça na direção do corpo. - As gralhas cuidarão dele.

6.

Ele a prensou contra o balcão, mas ela já esperava por isso - a ameaça de um marido imaginário era muito pouco para parar homens como o caçador. A carabina estava com Anya, a quem ela tentara ensinar o que sabia tão logo a moça demonstrara interesse, mas havia facas bem à mão e ela imediatamente buscou alcançar uma delas.

Afinal, fora com facas que conseguira escapar da outra vez.

No entanto, em vez de uma tentativa de avanço amoroso que poderia distraí-lo o suficiente para ela revidar, Vanya enrolou seus cabelos no braço, puxando-os até que Irina sentisse a nuca queimar, praticamente levantando-a do chão.

- Esse truque não vai funcionar comigo, minha querida. - ele afirmou com um sorriso satisfeito na voz, puxando-a para longe do balcão - Quem diria que eu viria no rastro de uma corça assustada e encontraria animal muito mais valioso?

Para horror de Irina, o caçador rasgou o ombro de seu vestido, exatamente onde estava marcado o nome de seu antigo dono. Não era uma coincidência - ele sabia exatamente do que estava atrás.

- ME SOLTE!

Ela se debatera desde o início, mas agora o terror a dominava verdadeiramente. Por um instante conseguiu se desvencilhar dos braços do caçador - um caçador de recompensas, é claro, como podia ter sido tão tola? - sem se importar com a dor e os muitos fios de cabelo deixados para trás, voando na direção das facas.

Ele conseguiu dominá-la antes disso, porém. Ela o mordeu mal percebendo o que estava fazendo, e então sentiu o impacto violento contra a boca, o sangue inundando sua língua.

- Bruxa! Acha mesmo que pode tentar lutar contra mim? Eu a matarei antes que você possa arder na fogueira, mas não a deixarei fugir.

9.

Sentadas de costas para a fogueira, elas observavam o oceano de sombras aos seus pés. Era uma longa descida que tinham para fazer nos próximos dias, mas era tempo de encontrar um novo abrigo.

Ou, talvez, talvez pudessem apenas continuar viajando, nunca parando num único lugar. Escondendo-se a céu aberto, em vez de no escuro. Vivendo em vez de apenas sobreviver. Descobrir o que era, afinal, ser livre.

Anya encostou a cabeça em seu ombro, os olhos piscando com o sono. Irina sorriu afetuosamente, inclinando-se para dar um beijo na testa da moça.

- Vai ficar tudo bem,não é, Annushka?

Um balbucio em resposta. Irina assentiu, talvez pela primeira vez acreditando que, de fato, tudo poderia terminar bem.


A Coruja


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