10 de setembro de 2015

Hábitos de Escrita de uma Virginiana Neurótica


Esse mês tem rodada do Quem Conta um Conto, então estou às voltas escrevendo a história para ela, com todas as minhas pequenas neuroses intrínsecas ao processo. Claro que isso me soou como uma excelente desculpa para escrever também essa coluna e assim, cá estamos nós!

(Não que eu precise de desculpas. De uma forma geral, ao menos no que diz respeito ao Coruja, eu faço o que quero!)

Enfim, vamos ao que interessa!

1) Entendendo os mecanismos da história (para manter na cabeceira)

De uma maneira grosseira e generalizada, as pessoas acham que escritores apenas se sentam para escrever e já sai tudo pronto de uma vez só, redondinho e perfeito. Não sei se para algum escritor isso funciona dessa forma (se sim, tenho inveja de você), mas eu costumo agonizar diante de uma folha em branco, mesmo quando já tenho uma boa ideia de sobre o que vou escrever.

Afinal, não se trata apenas de escrever uma história: é preciso saber como escrever uma história.

No meu caso, volta e meia estou lendo livros e artigos sobre construção e psicologia de personagens, interpretação, funcionamento real de itens utilizados no enredo... Tenho uma ‘biblioteca básica’ sobre o assunto para a qual volta e meia retorno, especialmente quando preciso de uma luz no fim do túnel: O Homem e seus Símbolos, de Jung, A Jornada do Escritor de Christopher Vogler e O Herói de Mil Faces do Campbell são meu bote salva-vidas.


O que esse pessoal ensina não é um roteiro passo-a-passo, um molde perfeito sobre o qual aplicar sua imaginação – ainda que haja quem os enxergue assim. Todos esses autores ajudam a compreender o mecanismo de uma narrativa e a enorme gama de significados que ela pode assumir; em outras palavras, como encontrar aqueles temas universais que ressoam para qualquer leitor com um mínimo de empatia.

Embora sejam livros técnicos, todos eles são muito claros, e com uma prosa agradabilíssima, de forma que recomendo para quem quer escrever ou ler melhor, aprofundando sua maneira de interpretar um texto.

Para além disso, há milhares de sites para usar como referência – eu recomendo em particular o The NaNoWriMo Blog, o The Beginning Writer e Better Novel Project (esse último, agradeço à Fernanda por tê-lo apresentado).

2) Ler, ler sempre e em todo lugar (a leitura te ajuda a se encontrar)

Escrever bem passa pela questão de ler bem. Ler sabendo interpretar, compreendendo os níveis de significado que uma história pode trazer. Quanto mais você ler, melhor vai escrever – até porque, aquelas regras de ortografia e sintaxe que você teve de decorar na escola vão surgir na sua cabeça intuitivamente de tanto você as ver repetidas nos textos que consome.

Isso é que é ler em qualquer lugar...

Eu leio praticamente tudo em que posso colocar as mãos e o que estou lendo está constantemente me rendendo ideias. Sendo uma fã de fantasia e mitologia, enxergo constantemente como a primeira bebe na fonte da segunda e um dos meus jogos favoritos é encontrar as referências (não à toa, os atores de que mais gosto são mestres em fazer esse tipo de cruzamento informativo). Ficção científica quase sempre me faz pensar em debates ético-filosóficos. Nos romances procuro por arquétipos shakespearianos.

A verdade é que não existe nada de REALMENTE novo na literatura, mas um constante reciclar de conceitos – princípios que toda sociedade e época consideram fundamentais. O que muda é a FORMA como você conta sua história. Isso é que faz toda a diferença.

Quer um exemplo? A semente de Heróis de Papel nasceu quando li uma carta de um soldado da Segunda Guerra no site Letters of Note. As Memórias de Churchill do período também serviram como inspiração, especialmente um trecho que fala como ler Austen foi importante para ele no período da guerra, que o fazia se lembrar do porquê eles estavam lutando.

3) Juntando as peças do jogo (amadurecendo ideias, pensando em nomes e significados, procurando a situação)

Como já disse antes, há quem se sente e já comece a escrever de uma vez só e produza um inteiro romance em alguns poucos dias. Na minha experiência, contudo, preciso refletir e amadurecer planos antes de começar efetivamente a escrever.

Quando tenho uma ideia, normalmente anoto em algum lugar e a deixo lá quieta. Passo alguns dias com ela na cabeça, normalmente em momentos improváveis, anotando novos encadeamentos que poderei eventualmente utilizar.

Somos o povo do Gaiman!

Na mudança, encontrei um envelope cheio de memorandos com sugestões para histórias – memos esses que escrevi quando ainda estava no colégio, mais de dez anos atrás. Alguns, descartei de pronto, porque tinham perdido sua razão de ser ou eram ridículos demais para serem levados a sério... mas outros estão agora de volta à minha caixinha para serem utilizados quando eu precisar de alguma inspiração.

Esse é o momento em que costumo procurar por nomes para personagens – eu travo completamente após a fagulha inicial até ter algum nome pelo qual chamar meu personagem. Antigamente eu tinha um Livro dos Nomes de Bebês, mas hoje em dia eu utilizo o Behind the Name se estou procurando um nome com um significado específico ou o Random Name Generator se quero uma coisa mais rápida.

Passei dias colecionando nomes que remetessem a clássicos e favoritos literários quando estava planejando Na sua Estante - e a escolha dos nomes terminou por influir na personalidade dos personagens.

4) Esquematizando o enredo (quando você já tem uma imagem do que vai ser)

Meu primeiro esquema costuma ser uma lista com três perguntas:

a) O que acontece no começo?
b) O que ocorre no clímax?
c) Como termina?

Se estou escrevendo uma história curta, essas três perguntas respondidas me bastam como direcionamento. Se o trabalho é para um enredo longo, então preciso de algo com mais substância.

Normalmente faço pequenas biografias (entre duas e cinco linhas) dos personagens – incluindo secundários. Quanto mais importante o personagem, mais vou refletir sobre o background dele, e, a certa altura, vou ter algo parecido com uma ficha de personagem de RPG em mãos.

O esquema inicial vai crescer. Além de começo, clímax e fim, vou anotar momentos que sejam necessários para o desenvolvimento do personagem e para o encaminhar da história. Ou, pelo menos, de cenas que quero desesperadamente escrever.

É nesse ponto do jogo que tudo são rosas e você está super empolgado para escrever...

Sim, por que às vezes acontece de escrevermos mais de cem páginas de história simplesmente para que um determinado diálogo aconteça. Praticamente todas as minhas histórias extras do Expresso, com a Mina, tiveram esse fator como determinante para ‘acontecerem’.

5) O processo físico da escrita

Após o 1% de inspiração, começa o 99% de transpiração. Sério, escrever uma história não é fácil, é preciso paciência, persistência, dedicação, escrever, reescrever, deletar tudo o que escrever, rasgar todas as páginas, começar do zero, cortar um bocado de coisa e depois revisar, revisar, revisar.

...mas quando vamos para os finalmentes...

Dependendo de sobre o quê você está escrevendo, muita pesquisa será necessária também. Se você é detalhista e neurótico como eu, vai chegar ao ponto de pesquisar ‘árvores típicas no sul da Rússia’ ou ‘mapas de avanço das tropas aliadas na Segunda Guerra’ – e não usar diretamente esse conhecimento, apenas para saber na sua cabeça o que está acontecendo ali.

Não digo que você deve ser um parnasiano, um ourives da palavra que mais se preocupa com a forma perfeita que com as idéias que produz e reproduz. Mas todo mundo que escreve – seja texto literário, seja academicamente ou para o trabalho – já agonizou com uma folha em branco, sem saber como conseguir transmitir o que você quer comunicar. Simplesmente regurgitar sobre a folha a primeira coisa que lhe vem à mente e já sair mostrando ao mundo só funciona quando você ainda está experimentando, descobrindo o que quer fazer, qual o seu estilo.

Eu não costumava revisar as fanfics que escrevia como Silverghost. Aquelas histórias foram minha primeira experiência escrevendo para um público maior que minha família e amigos mais próximos. Elas me serviram como um primeiro estudo para tentar encontrar meu próprio estilo – indo das histórias inteiramente baseadas nos livros até os universos alternativos com mistura de linhas históricas bizarras que só existiam na minha cabeça.

Hoje em dia eu me ruborizo quando releio certas cenas que escrevi nessa época. Mas não as deleto. Tenho orgulho, ao final das contas, de como elas cresceram, das pessoas que me apresentaram, dos comentários que recebi e que me encorajaram a continuar.

O fato é... escrever é um processo, não um único ato, em que você tem uma idéia fulminante e - bum! – está tudo encaminhado.

6) Reconhecendo o fato de que personagens são os verdadeiros donos da história (e isso é ótimo!)

Se eu tiver feito minha tarefa de casa direito, meus personagens terão personalidades distintas, vozes distintas pelas quais poderão ser reconhecidos. E de repente, chegarei a um ponto da história em que vou querer que esse personagem aja de uma determinada maneira e vou descobrir que ele recusa essa ação.

Isso porque, dentro de seu background ele criou princípios, crenças. Ele tomou as rédeas de seu destino. Se você forçá-lo a agir fora desse padrão, ele – e sua história, por consequência - perderá a coerência.

Isso é o que acontece quando seu personagem deixa de ser coerente...

Mina MacFusty foi uma personagem que escrevi por mais de meia década, nos tempos do Expresso. Ela cresceu MUITO ao longo de sua existência, distanciou-se da minha idéia inicial. Na última fase da história, cheguei a pensar em fazê-la fugir de suas responsabilidades nas Hébridas para ficar em Londres com os amigos... mas isso negava todo o crescimento que ela tivera até então, contrariava a importância que ela dava para sua família e a comunidade em que crescera.

Se eu tivesse insistido, ela teria simplesmente deixado de ser a personagem com quem eu estivera escrevendo por tanto tempo. Ela se negava a agir daquela maneira, então tive que pensar em como ela faria para lidar com o conflito entre suas lealdades e deveres. Isso abriu possibilidades muito mais interessantes do que eu tinha pensado inicialmente e mantinham todo o desenvolvimento anterior da personagem.

7) Jogando tudo fora e se desafiando

Escrever é um ato de criação e imaginação. Colocar muitas regras nesse processo é, ao final das contas, um retrocesso. Meus esquemas e pesquisas funcionam para mim porque costumo funcionar melhor dessa maneira, mas caos criativo é também fundamental e costumam ser meu ‘remédio’ para bloqueios.

Gosto de fazer jogos de associação e escrita livre. Começo com uma palavra e depois vou anotando outra e mais outra e mais outra que na minha cabeça derive da primeira: sol – jardim – caramanchão – escondido – segredo... E aí escrevo qualquer coisa – uma cena, um diálogo inspirado naquela uma palavra da associação – sem limites ou restrições.

Com algumas alterações, começamos esse ano a usar esse jogo no Coruja, em forma de bingo: temos uma cartela com 25 palavras, cada um escreve (eu, Ísis, Dé)/desenha (Dani) alguma coisa inspirada numa palavra escolhida da cartela e quem completa a fileira do bingo primeiro ganha o direito de criar a próxima cartela.


Isso me destravou de um bloqueio severo e rendeu vários pequenos contos que podem ou não servir para criação de algumas histórias mais longas futuramente. Nenhum deles foi revisado e normalmente foram escritos de uma sentada só, no calor da inspiração – precisam urgentemente de algum polimento – mas eles serviram como uma luva para o que eu precisava no momento e ajudaram a dar uma amenizada em outras neuroses minhas de ocasião.

Outros desafios que te levam a sair da sua zona de conforto também funcionam bem para você expandir seus limites. O Quem Conta um Conto funciona exatamente para isso cá no Coruja (embora por compromissos diversos, a periodicidade dele quase sempre deixe a desejar...), e quero um dia experimentar fazer o National Novel Writing Month... mas não será esse ano, considerando a quantidade de prazos que tem chegado aqui...

Enfim... Descubra seu próprio processo. Que horário você costuma render melhor, quando tem as melhores idéias. Faça esquemas ou não faça esquemas. O importante, no final, não são as regras – elas são apenas linhas guia, não mandamentos absolutos.

No fim, e, acima de tudo?... Apenas escreva.


A Coruja


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3 comentários:

  1. Better Novel Project é maravilhoso! \o/
    Me identifiquei muito com seu algoritmo de escrita, huahuahuhau. Eu funciono quase assim, tirando a parte de criar "fichas de personagem". E concordo: personagens tomam as rédeas da história e só cabe a nós continuar regando pra ver até onde eles vão...
    Gostei particularmente de você falar que "simplesmente regurgitar sobre a folha a primeira coisa que lhe vem à mente e já sair mostrando ao mundo só funciona quando você ainda está experimentando, descobrindo o que quer fazer, qual o seu estilo.". Estou usando o Wattpad e é exatamente isso, uma experimentação. A gente vai postando ao mesmo tempo em que vai criando, e sempre encarei mais como um aprendizado do que como uma obra prima, ainda mais que estou começando agora. Tem me rendido bons insights.

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    1. Eu acho bem legal vislumbrar a forma como outras pessoas desenvolvem seu processo de escrita. É um aprendizado constante, e ter o feedback é uma parte importante desse processo. Passa aí o link do wattpad ;)

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    2. Já vou me desculpando antecipadamente... Como eu disse, é mais um projeto de aprendizado, hahaha. Nem perto de Heróis de Papel (que por sinal eu tenho que tomar vergonha na cara e colocar em dia)
      https://www.wattpad.com/story/37834491-dons-de-inari-parte-i

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