23 de julho de 2015

Para ler: A Evolução de Calpurnia Tate

Minha mãe tinha tido uma filha em sete tentativas. Suspeito que eu não era exatamente o que ela havia planejado, uma filha delicada para ajudá-la a enfrentar a maré alta da energia turbulenta dos meninos, que sempre ameaçava inundar a casa. Não tinha passado pela minha cabeça que ela desejara uma aliada, e não havia conseguido uma. Bom, eu não gostava de conversar sobre moldes, receitas nem de servir chá na sala de visitas. Isso fazia de mim uma egoísta? Fazia de mim uma pessoa estranha? Pior de tudo, fazia de mim uma decepção? Provavelmente, eu poderia viver com o fato de me considerarem egoísta ou estranha, mais uma decepção?! Isso era outro assunto, algo bem mais difícil.
Quando me deparei com esse livro pela primeira vez na livraria, foi um caso de paixão à primeira vista. Como não se apaixonar por uma capa tão linda? Infelizmente, na ocasião, eu estava de viagem e não pude compra-lo porque já tinha excedido na bagagem. Algum tempo depois, o Dé me deu o livro de presente em algum amigo secreto do clube do livro e fiquei, claro, ridiculamente feliz. Aí comecei a ler e a paixão se transformou em puro afeto, vez que esse é um livro que vai para muito além de um belo projeto gráfico.

Calpurnia – ou Callie Vee, como prefere ser chamada – é uma jovem nascida no Texas da virada do século XX. Ela está numa idade em que tem de começar a deixar a liberdade da infância pelas restrições de seu gênero – restrições essa que sua mãe está constantemente reforçando e a garota continuamente resiste. Em meio a esse embate, Callie, que é bastante inteligente e observadora, começa a se interessar pelo trabalho do avô, um naturalista amador – que se tornará seu principal aliado, ao permitir que a neta aprenda e descubra oportunidades que, por ser uma garota, não estariam normalmente abertas a ela.

Em outras palavras? Numa época em que mulheres não podiam sequer votar e eram criadas única e exclusivamente para casar e ter filhos, Calpurnia Tate sonhava ser uma cientista.

Como protagonista, Callie é exatamente o tipo de personagem que costumo favorecer: inteligente, questionadora, corajosa e disposta a desafiar preconceitos e convenções. Ela nem sempre é simpática e positiva – um paradigma imposto pelo sucesso de Pollyana para protagonistas femininas juvenis – e, por isso mesmo, ela me parece tão interessante: Calpurnia é extraordinariamente humana e autêntica. Sua resiliência e obstinação, seu desejo por conhecimento, são qualidades muito mais admiráveis que a aceitação pura e simples do que os outros acham que deve ser nossa ‘parte na vida’.

Aliás, como uma introdução ao debate sobre gêneros, o papel da mulher na sociedade, este é um livrinho fantástico. Doloroso em algumas partes, em especial nos embates entre as concepções de mundo de Calpurnia e da mãe – e me entristece ver que aqui é a mãe que age como principal força repressora, enquanto o avô excêntrico faz às vezes de liberal (embora ele nunca se oponha de fato ao que a nora diz).

É um excelente livro sobre a passagem da infância para adolescência, sobre crescer, sobre encontrar nosso lugar no mundo. Por mais que a história se passe às vésperas do século XX, ele é extremamente atual. Ao final das contas, A Evolução de Calpurnia Tate é um daqueles títulos que eu queria de ter lido mais nova: eu gostaria de ter crescido com Calpurnia como minha heroína.
- A lição de hoje é a seguinte: é melhor viajar com esperança no coração do que chegar em segurança. Você entende?

- Não senhor.

- Significa que temos de comemorar o fracasso de hoje, porque é um sinal claro de que nossa viagem de descobertas ainda não terminou. O dia em que o experimento der certo será o dia em que ela termina. E eu acredito, inevitavelmente, que a tristeza de terminar supera a celebração do sucesso.
Esse ano foi publicada uma continuação e estou ansiosa para colocar minhas mãos nele. O primeiro livro termina numa nota esperançosa, mas é difícil acreditar que a trégua da mãe da Callie dure por muito tempo... Mas quero acreditar que, no final das contas, elas consigam se entender e Callie possa fazer aquilo que ama.

Nota:
(de 1 a 5, sendo: 1 – Não Gostei; 2 – Mais ou Menos; 3 – Gostei; 4 – Gostei muito; 5 – Excelente)

Ficha Bibliográfica

Título: A Evolução de Calpurnia Tate
Autor: Jacqueline Kelly
Tradução: Elisa Nazarian
Editora: Única
Ano: 2014
Número de páginas: 384

Onde Comprar

Amazon || Cultura || Saraiva


A Coruja


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2 comentários:

  1. Parece bonitinho... De certa forma, me lembrou "Brave"...

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    1. Ele é mais sério e foi um pouco mais além que Brave, deixou-me um pouco angustiada em certas partes... O debate de gênero dele é muito interessante, e mais realista...

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