24 de julho de 2015

Heróis de Papel - Capítulo 11


Capítulo 11

Início de Abril (Ano 2)

David,

Quase não acreditei no tamanho de seu último pacote quando vieram entregá-lo – e a essas alturas, metade do pelotão já pediu para incluir seus agradecimentos a você. Nossa pequena biblioteca praticamente dobrou de tamanho e, considerando que na maior parte do tempo – inclusive sob bombardeios – tudo o que fazemos é esperar, esse repentino aumento no número de opções de leitura nos caiu a todos como uma luva.

Eu já conhecia algumas de suas seleções – temos um favorito em comum: passei boa parte da minha infância sonhando em ser um mosqueteiro. Dos dois policiais, um eu já conhecia, mas é sempre bom voltar às raízes e sou um grande fã do bom doutor Watson. O outro, eu ouvira falar, mas não tinha lido ainda. Já o comecei e estou bastante curioso – não consegui ainda atinar o que acontecerá, qual a possível resolução para a rima dos dez negrinhos.

Como sempre, também apreciei muito seus desenhos – posso dizer que seu esboço da confeitaria, mais até que os doces, deixaram-me com água na boca? Não conheço o suficiente de arte, mas respondendo à sua questão, gostei do efeito de seu novo ‘estilo’. Há uma fluidez na ilustração e uma qualidade quase onírica no enfumaçado das sombras. Mais que um mundo sob as ondas, fez-me pensar em imagens de sonho...

Fico feliz de saber que está se dando bem com os vizinhos. Como já disse antes, nunca fui terrivelmente social, de forma que não cheguei a passar dos cumprimentos ocasionais, mas Alice costumava contar histórias, especialmente do senhor do apartamento de cima e seu fonógrafo.

Quanto às palavras cruzadas, não tenho nem palavras para explicar o contentamento que senti ante à pilha de jornais que conseguiu recolher. Curioso como coisas tão pequenas nos afetam, não? O quebra-cabeça foi também muito bem-vindo – aliás, como as palavras cruzadas, também gosto muito de quebra-cabeças. Jogos de lógica, de uma maneira geral, são meu ponto fraco.

Assim, aceite, por favor, meus agradecimentos e os de meus homens.

De fato, tivemos aqui um Natal branco. Porém, embora essa seja uma bela idéia na teoria, a verdade é que a neve foi uma maldita dor de cabeça. Trincheiras – como você provavelmente já deve saber, já que esteve em campanhas passadas – não são lugares que condizem com uma vida saudável. Uma gripe comum não demora a se transformar em pneumonia, e a exposição aos elementos e imobilidade forçada nos períodos entre observação e abrir fogo são um excelente condutor à hipotermia. Nosso Natal Branco terminou com o saldo de duas amputações por gangrena.

Eu quase desejaria ter sido enviado para uma das frentes no deserto, mas não acho que a situação seja tão melhor lá. E, se não é particularmente visível a chegada da primavera onde nos encontramos, ao menos o clima está mais ameno. Com alguma sorte, o próximo inverno nos verá de volta à pátria e protegidos por quatro paredes, com uma boa lareira em vez de barracas de lona, será mais fácil apreciar a neve.

Talvez então você possa passar o Natal conosco. Tenho fé que teremos encontrado Alice até lá– e não se culpe por não ter tido a idéia do anúncio antes. Antes de vir parar aqui, eu sempre passei as festas com ela – mesmo antes de minha mãe falecer, uma vez que nossas famílias eram amigas e praticamente vizinhas.

Sinto por sua família. Sei bem o que significa perdê-la; nenhuma platitude que eu lhe repita aqui pode preencher essa lacuna, mas, se quiser conversar, saiba que estou aqui. Durante o último ano, você foi para mim um apoio imensurável em mais sentidos do que posso contar. Se houver algo que eu possa fazer por você, por favor, fique à vontade para pedir.

Quanto à sua esposa... posso compreender de forma abstrata o que ela fez. A guerra nos faz mudar, e nem sempre podemos pedir para quem ficar para trás que compreenda essas mudanças. Mas não posso deixar de me ressentir pelo abandono dela. Por mais que você se conforme, não acho que você o merecesse, meu caro amigo, e não posso deixar de pensar que Anna foi egoísta.

Aqui, saber que há alguém à espera, alguém para quem voltar quando toda essa loucura terminar, é um dos grandes consolos que temos. Do contrário, que motivo temos para estarmos aqui? E como poderíamos manter nossa sanidade?

Esperança e compaixão são as duas coisas que sei me fazem permanecer humano. Eu agradeço por seus conselhos e entendo a sabedoria de suas palavras. Mas peço, por favor, que não se preocupe – conheço meu dever. Não odeio os soldados inimigos, mas certamente não concordo com as ideologias e o mundo que eles defendem. Não tenho intenção de nos ver nos rendendo e baixando armas quando já chegamos tão longe.

Contudo, a verdade é que, se tivéssemos agido antes, essa guerra não teria acontecido – ou, pelo menos, seria algo numa escala muito menor. Nunca tive razão para questionar meus superiores – eles estão aqui por seus méritos e sabem o que estão fazendo. Mas questiono as decisões políticas que nos levaram ao ponto que estamos.

Mudando mais uma vez de assunto, o velho Mathieu, o pescador de que lhe falei antes, levou-me ao farol. Segundo ele, havia piratas nessa costa antigamente, e o porto aqui próximo era um de seus desembarques. A responsável por manter o farol era a amante do capitão e, enquanto ele estava longe, ela pegou uma febre e faleceu. Apesar disso, todas as noites de tempestade, a luz estava acesa, embora ninguém se aproximasse do farol após a morte da mulher.

Ninguém sabe o que aconteceu com o capitão pirata, mas Mathieu acredita que o navio tenha naufragado muito antes da dela morrer. Parece que, nas noites de tempestade, quando a luz do farol está acesa, é possível ver sobre as ondas os contornos de um navio fantasma.

Perdoe-me se não sei contar histórias. Releio as linhas acima e elas não têm sequer metade do encanto das palavras de Mathieu, quando este narrava seu conto. Talvez seja porque essa não é uma história para ser lida, e sim, ouvida. Ou talvez seja ela uma história para ser contada junto ao farol.

Quanto ao castelo perdido nas brumas, ele não apareceu para mim, mas não creio que gostaria que ele aparecesse depois de ouvir sua história. O velho Mathieu também me fez o favor de contá-la, e, aparentemente, o senhor do castelo era um homem cruel que gostava de sumir com aldeões em suas masmorras– e, hoje, ele captura os incautos que se perdem na bruma junto ao castelo.

Não pude conseguir novos postais para você dessa vez – para além de minha visita ao farol, estive de serviço quase constante no nosso hospital de campanha e também no front. O oficial responsável pelo pelotão foi um dos desafortunados que terminou na enfermaria com pneumonia, de forma que tive de assumir o comando por alguns dias.

Não que isso seja algo de que se orgulhar, já que fui alçado ao posto pela absoluta ausência, no momento, de outros oficiais em nosso acampamento. A única vantagem real do posto é ter o serviço completo de chá mesmo no fronte. É uma cena um tanto surreal, quando lhe apresentam um prato de sanduiche e uma xícara de chá enquanto bombas caem sobre a sua cabeça.

Na falta de postais, contudo, mando conchas que catei junto ao farol no dia em que estive lá com Mathieu. Uma vez que não sei contar a história direito, nem posso reproduzir a sensação de estar naquele lugar numa carta, as conchas falarão por mim.

Espero que não tenha cruzado com outros loucos em seu caminho e que essa carta lhe encontre em bons espíritos.

Alex.


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