19 de maio de 2012

Do Gênesis ao Apocalipse: Júlio César


Tive uma certa dificuldade em escolher o livro desse mês para essa coluna. A única coisa de que eu tinha certeza é que, após visitar a civilização grega, era hora de dar um pulo em Roma. Questão é que com o especial do Sherlock, passei o mês de maio todo pensando em crimes, assassinatos, sangue, sangue, sangue, sangue... (o que é contraditório, porque nem tem tanto sangue assim nos contos de Doyle...)

Finalmente, depois de passear por Ovídio e Virgílio, acabei me decidindo por Shakespeare. Vá entender... mas o fato é que na tragédia de que falaremos a seguir, Shakespeare trabalhou uma das cenas mais emblemáticas da história romana – e o fez de uma forma que posso incluir o livro na minha lista de assassinatos do mês de maio.

Prometo que junho volto ao normal. Enquanto isso, fiquem com A Tragédia de Júlio César.

Júlio César, ainda és poderoso!
Teu espírito vaga pela terra
E faz virar nossas espadas contra
Nossas próprias entranhas.
Esse livro faz parte do ciclo de peças shakesperianas com temas históricos e muitos críticos, curiosamente, classificam-na como um esboço inicial para o que viria a ser Hamlet.

Não concordo muito com essa visão ainda que entenda de onde vem essa idéia de semelhança – tanto Bruto quanto Hamlet se deixam convencer de que uma ação criminosa é necessária para vingar um parente perdido; para o príncipe da Dinamarca, o pai, para Bruto, Roma, a pátria-mãe. Hamlet tem como demônio para guiar seus pensamentos o fantasma do próprio genitor, enquanto Bruto se deixa levar por Cássio, um inimigo não declarado de César.

Não vejo muitas outras afinidades aí. A depender de nossa interpretação das peças, Hamlet se deixa levar à vingança pela insanidade (ou pelo menos, essa é a minha interpretação) enquanto que Bruto se convence da necessidade de matar César pela sobrevivência de Roma.

Estou entrando em detalhes críticos, contudo, sem sequer lhes apresentar a trama – ainda que eu tenha certeza que a maioria de vocês, mesmo que não tenham lido a peça (leiam, leiam, leiam!), conhecem a história.

Shakespeare nos apresenta em sua tragédia um César já em declínio, surdo de um ouvido, com mania de falar de si mesmo em terceira pessoa, vulnerável em sua própria grandeza. Na tragédia que leva seu nome, César é, na verdade, um coadjuvante, sendo Bruto o centro da ação.

É pela visão, pelas palavras e pelas mãos de Bruto que a ação se passa. Para justificar seu crime, o Senado precisava que ele segurasse a arma, que ele apunhalasse o homem que mais lhe estimava e amava de forma paternal.

E aí, talvez, resida a maior tragédia de uma peça que é repleta delas. Plutarco e Suetônio, autores romanos em que Shakespeare se baseou para contar sua história, afirmavam que Bruto era filho natural de César. O bardo não usou de forma explícita essa informação, mas a ambigüidade do relacionamento de César e Bruto está em seus versos – reconhecido ou não, sentimentos entre eles um verdadeiro afeto familiar.


Eu não duvidei nem por um momento que Bruto amasse César. Contudo, ele ama mais a Roma e acredita verdadeiramente que a tirania de César acabará com ela. Ou assim se deixa convencer – e alguns teóricos enrolam aqui complexo de Édipo e a necessidade do pai-totem ser morto para que o filho possa assumir seu papel.

O problema é que acaba sendo fácil demais assassinar César. Continuamente, o general é alertado para ter ‘cuidado com os idos de março’ – sua esposa tenta alertá-lo, sacerdotes lêem sua sorte, inimigos de seus inimigos o acautelam... e ainda assim, César caminha para sua morte como um cordeiro para o sacrifício.

A sensação que fica é que ele conscientemente seguiu para o martírio, sabendo que sua morte serviria como a base do Império.

Claro que isso seria impossível sem Marco Antônio – e eis que estamos diante de um dos pontos altos da inteira carreira do bardo. Sucessivamente discursam para o povo atarantado diante da morte de um de seus maiores líderes, Bruto, que confessa o assassinato mas o justifica diante de uma causa maior e Marco Antônio, que faz vibrar a população com a infâmia de uma morte à traição.
Que queda essa, caros concidadãos!
Eu, vós, nós todos nesse instante caímos.
O discurso de Marco Antônio é uma das maiores peças de propaganda da História – de um minuto para o outro, o povo que acreditava piamente que César já tinha ido tarde passa a compreender que perdeu ‘o mais nobre homem que jamais vivera na corrente do tempo’. Bruto empenha sua honra, fez o que fez para que os cidadãos não se tornassem todos escravos; Marco Antônio transforma Bruto em demônio ao revelar o ‘testamento’ de César, no qual todos os cidadãos são seus herdeiros.

Que Antônio sentisse a falta de seu mentor, acredito; que ele não tenha visto a oportunidade e aproveitado-se dela para tomar o poder, são outros quinhentos. No final das contas, aquele que apunhalou César parece ser o que mais amava, o que mais se importava com o destino do General. Eis a tragédia de Júlio César, que é, na verdade, a tragédia de Bruto – sangue e sacrifícios que pavimentaram o caminho para o poderoso Império Romano.


A Coruja


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