8 de junho de 2011

Para ler: O Mercador de Veneza

SHYLOCK - Os judeus não têm olhos? Os judeus não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? Não ingerem os mesmos alimentos, não se ferem com as armas, não estão sujeitos às mesmas doenças,não se curam com os mesmos remédios, não se aquecem e refrescam com o mesmo verão e o mesmo inverno que aquecem e refrescam os cristãos? Se nos espetardes, não sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se nos derdes veneno, não morremos? E se nos ofenderdes, não devemos vingar-nos? Se em tudo o mais somos iguais a vós, teremos de ser iguais também a esse respeito. Se um judeu ofende a um cristão, qual é a humildade deste? Vingança. Se um cristão ofender a um judeu, qual deve ser a paciência deste, de acordo com o exemplo do cristão? Ora, vingança. Hei de por em prática a maldade que me ensinastes, sendo de censurar se eu não fizer melhor do que a encomenda."
Após Muito Barulho por Nada, essa aqui é minha peça favorita do bardo. Assim, uma vez que estamos no mês do teatro no Desafio Literário 2011, achei que nada era mais justo do que escrever também uma resenha desta peça.

Sempre achei curioso que O Mercador de Veneza se inserisse no ciclo de comédias de Shakespeare. Claro que minha interpretação leva em conta fatos históricos posteriores à Inglaterra Elisabetana. Quando escreveu essa peça, Shakespeare estava fazendo uma provocação a Christopher Marlowe, que tinha escrito O Judeu de Malta: Shylock era a resposta shakespeariana ao Barrabás do rival.

Se fosse hoje escrever as trocas de farpas entre Shakespeare e outros escritores seus contemporâneos, ficaríamos aqui o dia todo. Talvez outro dia possamos entrar no assunto – por hora, basta saber que, à época, Marlowe era tão ou mais conhecido que Shakespeare, cujas primeiras peças, aliás, inspiravam-se naquele.

Dessa forma, Shakespeare criou Shylock para ridicularizar Barrabás... mas colocou na boca de seu personagem um de seus monólogos mais belos, que ecoa hoje com a idéia que temos de tolerância, de igualdade. Não havia muitos judeus na Inglaterra nesse tempo ou mesmo algum tipo de ressentimento nacional contra eles e, realmente, não faz sentido algum discutir se Shakespeare era ou não anti-semita estudando essa peça.

Na verdade, se quiserem ler nas entrelinhas de O Mercador de Veneza, faz muito mais sentido debater a paixão não correspondida de Antonio por Bassanio...

Teorias da conspiração à parte, vamos ao que interessa. Como em outras peças do bardo, há aqui duas narrativas paralelas: a oposição entre o nobre cristão Antonio, o mercador do título, e Shylock, o judeu agiota; e a corte de Bassanio a Portia. Bassanio é amigo de Antonio e, para cortejar a moça, que é uma fabulosa herdeira, pede dinheiro emprestado ao companheiro.

O problema é que a fortuna do mercador está investida em navios, que se encontram em todas as partes do mundo; de forma tal que, para ajudar o outro, ele vai pedir dinheiro emprestado a Shylock.

Pausa para lembrar das aulas de História: o livro se passa em Veneza, cidade italiana, país católico (embora possamos fazer muitas e muitas ressalvas à Italia como Estado Unificado até a Idade Moderna) - e em algum período medieval. A Igreja Católica proibia terminantemente a usura, o que, é claro, não daria muito certo numa cidade tão mercantil quanto Veneza. Afinal, comércio precisa de crédito e ninguém dá crédito de graça. Entram assim os judeus, que não têm problemas de consciência em emprestar dinheiro a juros.

Apesar de serem vitais para a economia, isso não significa que os judeus fossem menos odiados. Antonio despreza Shylock, a quem já cobriu de cusparadas e talvez até uns pontapés. Mas ele precisa de dinheiro e cristãos não emprestam dinheiro, de forma que só sobra a ele ir atrás de um judeu.

Agora considere que Antonio é a nata, o que há de melhor em Veneza, amado e respeitado por sua bondade e compaixão: se ele trata Shylock como menos que um cão, imagine como são simpáticos os outros cidadãos?

Vamos lembrar aqui que O Mercador de Veneza é uma peça. Como tal, sua interpretação é aberta e influenciada especialmente pelas montagens que são feitas dela, das atuações de cada ator. Lendo cruamente o texto, você talvez possa não encontrar muitos motivos para simpatizar com Shylock. Ele está longe de ser um personagem que inspire compaixão, aferrado que é a mesquinharias, disposto a ter sua libra de carne de qualquer maneira.

Além disso, ao tempo em que foi encenada pela primeira vez, Shylock muito provavelmente era retratado como um personagem ridículo, cheio de maneirismos e, muito provavelmente, ruivo.

Leia novamente o monólogo lá em cima. Agora, sinta nas entrelinhas anos de humilhação, de menosprezo, de ridículo, de desrespeito. Shylock entende sua importância; sabe que, sem ele, a cidade não funcionaria. As pessoas o encaram como um mal necessário, e que, se tivessem oportunidade, não hesitariam em apunhalá-lo pelas costas.


Na verdade, sua própria filha não hesita em fazê-lo.

A despeito do papel que tem na derrocada de Shylock, adiciono que Portia é uma das mais fantásticas heroínas shakespearianas. Ok, ela é hipócrita, gananciosa, arruína Shylock mesmo depois dele estar já completamente vencido e aceita o Bassanio apesar de saber que ele é um babaca e caçador de dotes. Mas o que ela faz naquele tribunal - onde, a se considerar seu gênero e posição, não deveria nem colocar os pés - é absolutamente genial: quando todos os doutores da lei de Veneza falham em salvar Antonio, ela entra para resolver a questão. E a resolve magistralmente.

Sugiro também assistir a adaptação para as telas feita em 2003, com Al Pacino no papel de Shylock. Todos os atores estão maravilhosos, mas a forma como Pacino interpreta o velho agiota é de dar calafrios. Especialmente na cena do monólogo. A despeito das intenções de Shakespeare ao criar Shylock, a verdade é que ele me deixa de coração partido.

E vocês? Qual a sua peça favorita do bardo?


A Coruja


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Um comentário:

  1. Ai como gosto de Al Pacino... *-*

    Sei que o post é sobre o livro, mas a ação supera as palavras... sensacional! ;-)

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