14 de agosto de 2009

Folhetins e uma dose de açúcar direto na veia


*Caro leitor, se você pertence à fração da população que possui o chamado cromossomo Y, o Ministério da Saúde adverte que as próximas linhas podem ser prejudiciais à sua saúde mental. Se você se sente mais confortável sabendo o menos possível sobre a mente feminina, por favor, pule este artigo.*

Tem gente que adora. Outros torcem o nariz. Há aqueles que nem consideram literatura, desdenhando de seus personagens simplistas, roteiros previsíveis, mocinhas frágeis e pálidas e heróis musculosos e, não raro, bronzeados.

Não sejamos, porém, tão rápidos em desdenhar dos folhetins.

Eles são uma página importantíssima na construção da Literatura, seja no Brasil, seja no mundo. A verdade é que hoje em dia, quando se fala em folhetins, a maioria das pessoas alterna pensamentos entre novelas, dramalhões mexicanos e romances de banca (também chamados de romances Harlequin, por causa do selo editorial). Mas existe uma longa história e um longo caminho entre os folhetins originais e o que entendemos por isso hoje em dia e, mesmo a literatura de banca tem seus méritos (dos quais falarei mais adiante).

Vamos começar do começo (não diga...) com aulinha de História. Em 1440, o alemão Johannes Gutenberg aperfeiçoou as prensas já existentes à época (esqueça a idéia de que ele inventou a prensa. Os chineses já tinham tipos móveis bem antes de Gutenberg sonhar em nascer), acelerando assim o processo gráfico e contribuindo para a disseminação e "nascimento" da imprensa.

Digo nascimento entre aspas porque a imprensa já existia antes, de forma mais rudimentar e limitada, mas, ainda assim, presente, na cultura mesopotâmica (onde nasceu a escrita) e entre os romanos (responsáveis pelo primeiro jornal regular da História, o Acta Diurna).

Quem sabe um pouco de História ou assistiu O Nome da Rosa (baseado na obra homônima de Umberto Eco, sobre quem, num futuro não muito distante, escreverei, visto ser um dos meus autores favoritos e estou enrolando como de hábito), certamente se lembrará de que livros, nesse período histórico, eram artigos raros, verdadeiramente 'de luxo' - poucos sabiam ler e o conhecimento era mantido, principalmente dentro dos mosteiros, onde os monges se especializavam em copiar à mão as obras existentes.

Pois bem... com a invenção da prensa móvel e os aperfeiçoamentos introduzidos por Gutenberg, a imprensa floresceu, criando um fenômeno que o filósofo Habermas chamou de esfera pública. Muito por cima, a idéia de esfera pública implica na formação de uma sociedade capaz de discutir; a imprensa seria aqui a responsável pela disseminação da informação e, com essa informação, a sociedade seria capaz de discutir o meio público, o governo, o Estado, enfim, tornando-se uma parte atuante dentro do grande esquema das coisas.

De um ponto de vista muito cínico e realista, a idéia de esfera pública foi arruinada pela massificação da comunicação (que é diferente da comunicação em massa, sendo, sim, comunicação de massa), e estamos todos muito acomodados com a gestão da coisa pública para nos preocuparmos em formar uma verdadeira esfera pública.

Ok, mas esse não é o tema de hoje. Outro dia eu posso falar disso. Vamos voltar ao que interessa...

O folhetim surgiu junto com a imprensa, vindo a preencher um nicho importante na história literária: mesmo com o progresso da nova prensa, livros continuavam (e continuam até hoje) caros. Destarte, os autores passaram a publicar suas histórias, em capítulos, nos jornais, alcançando assim um número muito maior de leitores.

Existiam folhetins para todos os gêneros. Alguns tratavam de temas sérios, como a miséria da classe operária (Marx era fã de Eugéne Sue, autor de folhetins como Os Mistérios de Londres, O Judeu Errante, entre outros), outros cuidavam de grandes romances de capa e espada, obras cômicas, outras satíricas. Havia aqueles indicados para as moças casadoiras e aqueles para homens sérios.

Não me lembro agora bem que autor brasileiro, falando de suas memórias, observa que foi parte importante de sua educação os inícios de noite cercados pela mãe e pelas irmãs, o jornal no colo, lendo os últimos lances dramáticos do folhetim que estivesse sendo publicado.

José de Alencar e Machado de Assis tiveram suas obras publicadas primeiro como folhetins. Aliás, salvo engano, acho que foi Alencar que fez a observação citada acima...

Um dos meus autores favoritos é um típico autor de folhetim, tendo utilizado de todos os recursos do gênero - identidades trocadas, romances impossíveis, grandes segredos ou mistérios envolvendo o passado dos personagens, fortunas perdidas (e recuperadas); cada capítulo terminando em seu ápice, deixando seus leitores a roer as unhas e arrancar os cabelos, tentando descobrir qual seria a próxima grande reviravolta da história.

Em 2002, seu corpo foi transladado para o mausoléu o Panteão de Paris - onde estão enterrados os maiores filósofos e escritores franceses. Jacques Chirac, que era presidente à época, disse em seu discurso: "Contigo, nós fomos D'Artagnan, Monte Cristo ou Balsamo, cavalgando pelas estradas da França, percorrendo campos de batalha, visitando palácios e castelos - contigo, nós sonhamos.".


Se você ainda não conseguiu adivinhar de quem estou falando, o nome é Alexandre Dumas (o pai, não o filho, que também foi escritor). Todo mundo o conhece por Os Três Mosqueteiros, mas meu livro favorito dele é Os Irmãos Corsos... embora Aramis, o mosqueteiro que representa a astúcia e vira padre nas obras posteriores à original (Vinte Anos Depois, O Homem da Máscara de Ferro e O Visconde de Bragelonne) esteja na minha lista de personagens literários pelos quais sou apaixonada.

Com o advento do rádio (e da radionovela), o folhetim vai deixar de existir em sua encarnação impressa. A radionovela é o primeiro passo para a novela, a maior herdeira de todo o conceito do folhetinesco.

Não sou uma grande fã de novelas; além disso, eu tenho um outro rumo para esse artigo, então, vamos partir agora para outro ponto de vista de toda essa história.

Os folhetins tinham diferentes públicos, diferentes orientações, mas não há dúvidas de que um dos principais alvos dos jornais ao publicarem histórias como A Moreninha - um dos maiores sucessos literários no Brasil, numa época em que a maioria quase absoluta da população era de analfabetos - eram as mulheres, que ficavam em casa e que se distraíam lendo estes romances.

Esqueçam idéias de feminismo por um instante aqui (se há alguma feminista a me ler) e nos concentremos na idéia da época. As mulheres eram criadas para cuidar do lar, para o casamento. Pouco ou nenhum interesse, para elas, despertavam as notícias ditas "sérias" dos jornais. Ou, ao menos, essa era a mentalidade dos editores. Elas eram, contudo, uma fatia significativa de mercado - todos os jornais podiam publicar as notícias do dia e os homens comprariam qualquer um, dependendo, talvez, apenas de posições partidárias.

No entanto, se as mulheres em casa quisessem ler determinada história que só estava sendo publicada em determinado jornal, o marido ou pai da dita compraria aquele jornal, leria suas notícias e entregaria o caderno do folhetim para a interessada.

Não é à toa que à idéia de folhetim ficou entrelaçada a pecha de "literatura de mulherzinha".

Em minha época de escola, quando passaram A Moreninha na matéria de Literatura, lembro de ter lido a coisa toda com gosto (não que seja muito difícil eu ler alguma coisa com gosto; a única coisa que realmente não leio é livro de auto-ajuda). Lembro também de ter tido vontade de ver um sarau, de participar de um baile, de viajar a Paquetá. Eu não fui a única; dos livros passados naquele ano, acho que foi um dos favoritos de toda a turma.

O último grande sucesso literário, o livro (ou série) que está em todas as paradas, o filme que explodiu no cinema, Crepúsculo da Stephanie Meyer, traz todos os elementos dos folhetins mais açucarados possíveis.

Esses dois exemplos parecem bem díspares, mas estou tentando marcar um ponto aqui. Eu me reconheço como uma feminista; não queimaria sutiãs em praça pública, mas sou uma defensora da igualdade entre sexos, do combate à violência contra a mulher (que não deixa de ter suas raízes na idéia de que o homem tem a posse de sua esposa, filha ou seja lá qual for o parentesco), entre outras bandeiras.

Sou um produto da minha época, uma garota do século XXI, com idéias de independência e sucesso muito diferentes daquelas que as garotas que leram A Moreninha originalmente. Ainda assim, da mesma forma que, talvez, minha tataravó, suspirou pelos cantos com a história, eu também suspirei.

Esqueçamos, contudo, o exemplo individual. Em termos de números, a série da Meyer é um fenômeno e às vezes é quase incompreensível entender o apelo que um personagem como Edward Cullen exerce - especialmente se considerarmos que o público leitor destes livros é a mesma geração que popularizou o "ficar".

A questão é que Edward apela exatamente para o mesmo lugar que os folhetins apelavam; a história de amor quase impossível entre o herói angustiado e a mocinha quebradiça apela para um aspecto que foi quase soterrado pela constante evolução da sociedade, pela entrada da mulher no mercado, por sua competição ombro a ombro com o homem...

Romance. Essa é a palavra-chave.

Eu tenho uma tia que adora romances de banca. Não, ela não é uma desocupada que gosta de ler coisas bobinhas. Ela é pedagoga, com textos e trabalhos publicados, extremamente inteligente e uma leitora voraz de tudo o que cai nas mãos dela. E também gosta de romances de banca. Certa vez, isso já faz alguns anos, estávamos conversando e ela disse "às vezes, precisamos de uma dose de açúcar direto na veia e não há coisa melhor que esses livrinhos para esquecer do resto do mundo".

Ela não poderia ter resumido de forma melhor.

Escrevi mais acima que era quase incompreensível entender o apelo de personagens tão à antiga (e controladores ao extremo...) como o Edward, especialmente quando levamos em conta que ele é um "queridinho" da mesma geração e da mesma cultura que popularizou a idéia de relacionamentos líquidos - para usar a expressão do sociólogo Zygmunt Bauman.

Mas, acredito eu, esse é exatamente o motivo do sucesso. Na cultura do feminismo, às vezes, o feminino se perde e essa idéia de fragilidade, de romance e de segurança - porque o amor romântico traz em seu bojo a idéia de segurança familiar - trazida pela literatura acaba por preencher essa necessidade.

Antes do feminismo, o romance literário vinha se impor numa sociedade em que as mulheres eram commodites, ou seja, troca de moeda em casamentos arranjados, negociações complicadas que envolviam terras e dotes. Também elas precisavam da ilusão do romance, da idéia de que, em algum lugar, haveria um cavalheiro de armadura brilhante pronto para vir em seu resgate; alguém por quem ela se apaixonaria perdidamente e com quem ficaria pelo resto da vida, feliz.

Minha tia tem razão. Às vezes, precisamos de uma dose de açúcar e uma dose direto na veia. É a essa necessidade que respondem os romances. É uma aspiração de todos a felicidade e, é certo, consideramos a idéia do amor romântico dentro do pacote da "felicidade".

Claro, eu poderia fazer uma pequena viagem até Schopenhauer e fechar tudo com a teoria evolucionista de Darwin, mas não serei uma cretina. Sim, paixão é uma emoção totalmente dependente de reações químicas, reações essas que podem ser conseguidas comendo chocolate (e é por isso que existem tantos chocólatras no mundo)! Mas, por um momento, vamos deixar a evolução das espécies e a química orgânica de lado. De vez em quando, precisamos largar a mão de ser São Tomé e acreditar sem ver.

Romance, turma. Você já tomou a sua dose hoje?


A Coruja


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4 comentários:

  1. concordo plenamente com a importancia do romance de banca, de vez em quando eles são necessários!

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  2. Sim, romance é bom. Romance é legal, comédia romantica então é praticamente um quindin com leite condensado em cima. Eu gosto de romance, dependendo do humor em doses homeopaticas, dependendo da abstinência em doses cavalares, porém sempre é uma coisa meio sofrida, o que faz com que eu deixe a pergunta clássica:
    É melhor ter amado e perdido do que nunca ter amado?

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  3. Concordo totalmente...e fiquei com vontade de ler Dumas, heheheh. Eu diria que ninguém vive sem doses periódicas de romance, mas eu sou um sonhador e um romântico convicto, caso clínico mesmo, então minha opinião não vale. Mas penso que todo mundo precisa sonhar, precisa de uma válvula de escape desse mundinho agridoce de merda em que vivemos...alguns buscam romances, outros buscam músicas, outros buscam a fé, outros buscam simplesmente.

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  4. Eu curto muito narrativas românticas, mas por conta do trabalho, acabo lendo mais livros considerados "alta literatura". Sim, coloco as aspas porque não acredito nisso. Literatura, para mim, é literatura. Gostei muito da reflexão e sim, acho que precisamos dessa dose de açúcar de vez em quando. Como alguns dizem, é pra "desopilar o fígado". rsrsrsrs

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Livros, viagens, filosofia de botequim e causos da carochinha: o Coruja em Teto de Zinco Quente foi criado para ser um depósito de ideias, opiniões, debates e resmungos sobre a vida, o universo e tudo o mais. Para saber mais, clique aqui.

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